Quem precisa de religião?
Segundo os religiosos, o desaparecimento da fé levaria as pessoas a se permitirem todo tipo de abuso e maldade. Porém, quando se considera que as religiões conduzem ao discurso totalitário e à violência, o jogo se inverte
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Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os "sem religião" são uma minoria que cresce no Brasil. Mas em um país onde cerca de 92% das pessoas se dizem religiosas, quem admite a descrença pode ainda ser alvo de preconceitos. Algumas pesquisas independentes mostraram que, aos olhos da maioria dos crentes confessos a admissão de irreligiosidade, possível escolha existencial dentro de uma sociedade democrática e pluriforme, é considerada automaticamente absurda, imoral, ameaçadora ou politicamente incorreta. A "demonização" dos irreligiosos ocorre, na prática, como uma condenação sumária, sem que os réus tenham direito a um debate racional e esclarecedor.
Dados fornecidos pelo Atlas das Religiões mostram que cerca de 80% da humanidade pertence nominalmente a alguma instituição religiosa. Contudo, entre os restantes 20%, nem todos são francamente ateus ou sem credo. A exemplo do que ocorre na China, em alguns países controlados por governos totalitários, milhões de devotos de variados matizes dissimulam suas crenças e oficialmente se declaram sem religião por medo da repressão do Estado. Muitos outros indivíduos rejeitam a religião institucionalizada, mas adotam formas alternativas de religiosidade ou alimentam uma interpretação religiosa do mundo, cujos contornos são particulares ou subjetivos. Tudo isto somado, os religiosos podem representar, atualmente, mais de 90% da população mundial.
Marcelo da Luz é professor, conferencista, autor do livro Onde a Religião Termina? (2011) e pesquisador da Conscienciologia. Contato: autormarcelodaluz@gmail.com |
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A mediunidade ignorada ou mal interpretada está também presente na origem da "vocação" dos indivíduos religiosos, a exemplo de santos, profetas, místicos, fundadores de seitas, entre outros, como São Francisco de Assis e Santa Teresa d'Ávila |
Contra ou a favor da religião?
A Psicologia, desde suas origens, investiga o fenômeno religioso. Foi nos Estados Unidos, em fins do século XIX, que a Psicologia da Religião começou a se constituir em área autônoma de investigação científica, separando-se das abordagens teológicas sobre o tema. Psicólogos clássicos, a exemplo Stanley Hall e William James, são contados entre os pioneiros das pesquisas acerca da influência da religião sobre o comportamento humano. No que tange à descrença, Sigmund Freud se destaca como o expositor de teorias que reduzem o fenômeno religioso à condição de neurose coletiva. Em sua obra O Mal-Estar na Civilização, Freud compara as experiências místicas ao desejo reprimido originado no desamparo da criança, considerando a religiosidade uma expressão da infantilidade humana.
Foi nos Estados Unidos, em fins do século XIX, que a Psicologia da Religião começou a se constituir em área autônoma de investigação científica
É claro que também não faltam as abordagens psicológicas que acentuam o suposto efeito salutar da experiência mística sobre o psiquismo humano. Dissidente do modelo psicanalítico freudiano, o psicoterapeuta Carl Jung era convicto de que a religião possui a função de "religar" ou restabelecer, por meio de símbolos, o diálogo do indivíduo com o self. Na base de inúmeros problemas psíquicos estaria o esquecimento das necessidades espirituais. Assim, a vivência da experiência religiosa ou mística evitaria a dissociação neurótica da psique. Os estudos de Jung servem de imprescindível referência aos interessados na convergência entre psicoterapia e direção espiritual.
Várias aproximações entre Psicologia Clínica e assistência religiosa são realizadas na atualidade. Exemplo disso é o trabalho do estadunidense Kenneth Pargament, o qual defende a ideia de coping religioso-espiritual, isto é, a utilização de atitudes religiosas para lidar com o estresse. Segundo Pargament, pacientes encontram melhoria da saúde física e mental quando recorrem ao consolo dos rituais da fé.
Cavaleiros do ateísmo
Durante a primeira década deste século, as vozes antirreligiosas ampliaram o seu alcance por meio dos livros e debates divulgados pelos "cavaleiros do ateísmo". Entre estes, encontram-se o biólogo britânico Richard Dawkins, autor do livro Deus, um Delírio; o filósofo e neurocientista estadunidense Sam Harris, que escreveu A Morte da Fé; o jornalista britânico Christopher Hitchens (1949-2011), autor da obra Deus não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo. Estes autores questionam os supostos benefícios da religião, retirando a incredulidade da condição de tabu. Entretanto, na ânsia de denunciar as inconsistências lógicas dos discursos religiosos, os cavaleiros do ateísmo apontam os canhões de sua argumentação contra as religiões monoteístas e afirmam solenemente a inexistência de Deus, estabelecendo novo dogma, desta vez em nome da ciência. Embora advoguem o exercício da razão esclarecedora, as abordagens do ateísmo militante frequentemente se mostram intolerantes ao fazerem uso apaixonado de jargões ofensivos, tiradas sarcásticas e piadas humilhantes contra os religiosos. O resultado acaba sendo o acirramento do fanatismo religioso e a demonstração de que emoção e intemperança não são boas companheiras da razão. No entanto, o ponto mais criticável no ateísmo é a absoluta redução que este faz da consciência humana à matéria. A fim de eliminar as crendices supersticiosas, os rituais escravizantes e as interpretações humanas da divindade, os pesquisadores ateus acabam considerando como absurda qualquer possibilidade de transcendência do espírito sobre o corpo.
Importam, portanto, duas perguntas. Primeiro, o questionamento da fé religiosa passa necessariamente pelo materialismo? Uma resposta negativa a essa pergunta dispensaria a religião sem adotar os reducionismos do ateísmo materialista. E, segundo, seria possível experimentar a transcendência da consciência (alma, espírito) sobre a matéria, sem a profissão de misticismo ou de alguma espécie de religiosidade? Uma resposta afirmativa a essa pergunta mostraria que religião e fé são desnecessárias para endereçar as questões que sempre inquietaram a humanidade: de onde viemos, quem somos e para onde vamos?
Alma: invenção?
Na tentativa de responder a essas perguntas e dispensar a fé religiosa, produzi o livro Onde a Religião Termina?, pois este é um assunto que levanta questões antigas, já que dou um ex-padre e atual pesquisador independente . O livro traz uma intrigante hipótese sobre a origem da religião. As ciências que se dedicam à investigação do fenômeno religioso a partir de diferentes pontos de vista (Antropologia, Sociologia, Psicologia e, mais recentemente, a Neurociência) concordam em um ponto: os seres humanos, em um estágio de vida ainda primitivo, teriam inventado as ideias de "alma" ou "espírito" e a possibilidade de comunicação seja com as energias da natureza, seja com o "mundo" dos mortos. Essas invencionices estariam na origem dos rituais mágicos e do posterior desenvolvimento das religiões organizadas. A pressuposição de ideia de alma não passar de algo imaginário fundamenta a crítica materialista à religião, pois a base empírica para a alegação das experiências espirituais seria falsa e inexistente. Entretanto, o livro vai na contramão das abordagens científicas convencionais, afirmando a hipótese de haver, na origem dos conceitos de alma ou espírito não a pura fantasia dos primitivos, mas a parapercepção, isto é, a experiência dos fenômenos parapsíquicos, popularmente conhecidos como fenômenos extrassensoriais, mediúnicos ou paranormais.
O psicoterapeuta Carl Jung era convicto de que a religião possui a função de "religar" ou restabelecer, por meio de símbolos, o diálogo do indivíduo com o self
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Os líderes religiosos julgam ter as fórmulas seguras que levam à garantia da salvação. Uma metáfora evangélica, "pastores e ovelhas", expressa essa relação de dependência: animais passivos e indolentes, as ovelhas obedecem sem questionar ao comando do pastor |
O que é parapsiquismo
Na ânsia de denunciar as inconsistências lógicas dos discursos religiosos, os cavaleiros do ateísmo apontam os canhões de sua argumentação contra as religiões monoteístas
Dentre os muitos fenômenos parapsíquicos possíveis (clarividência, clariaudiência, premonição, telepatia e tantos outros), o fenômeno mais contundente para a verificação de outras dimensões e possibilidades de existência além da matéria é a projeção consciente(conhecida popularmente como "viagem astral"). Pelo fenômeno da projeção, a pessoa sai da dimensão física e pode visitar outras dimensões extrafísicas (além da dimensão física), utilizando um tipo de corpo ou veículo mais sutil, o psicossoma (conhecido no espiritismo como períspirito, ou simplesmente, na linguagem mais popular, por "alma"). O psicossoma pode ser descrito como um corpo objetivo, pois as experiências realizadas a partir deste veículo são reais e muito distintas de vivências subjetivas, a exemplo de sonhos, autossugestão e alucinação. A admissão da existência do corpo objetivo é o fundamento da mediunidade, a qual não se reduz à imaginação, nem tampouco se circunscreve apenas ao mundo físico, como pretendem os materialistas. Tal hipótese pode ser ilustrada pela história das religiões. Por exemplo, muitos eventos descritos como episódios milagrosos e que estão na origem das tradições religiosas mais veneradas do planeta, foram, em realidade, fenômenos parapsíquicos interpretados de maneira mística. Um exemplo bem familiar à nossa cultura é a ideia cristã de ressurreição. As aparições de Jesus após a morte, relatadas nos evangelhos e consideradas pelos cristãos ao modo de "provas" da ressureição, podem ter sido o efeito de materialização de espírito, isto é, a visualização da forma do psicossoma da consciência extrafísica, possibilitada pela emanação de ectoplasma do corpo dos médiuns presentes no momento, um fenômeno relativamente comum em sessões mediúnicas. A mediunidade ignorada ou mal interpretada está também presente na origem da "vocação" dos indivíduos religiosos, a exemplo de santos, profetas, místicos, fundadores de seitas, entre outros. A biografia de muitos santos famosos do catolicismo, a exemplo de São Francisco de Assis, Santo Antônio de Pádua e Santa Teresa d'Ávila estão repletas de episódios parapsíquicos, que reforçavam nessas pessoas a fé e o senso de missão. Contudo, o engano parapsíquico não é o único problema dentro deste debate. Entre os possíveis desvios provocados pela religião está a formação da mente sectária. O devoto passa a interpretar a vida por meio da doutrina particular da sua religião e está plenamente convencido de que o seu grupo é dono da "revelação" ou "verdade" absoluta. Isso gera, frequentemente, o sentimento de que o seguidor de uma religião diferente, o "outro", é um rival. No cristianismo, por exemplo, existem cerca de 33.800 seitas diferentes, todas pretensas candidatas a ser a legítima representante da "verdade única" do evangelho. Alguém poderia objetar que isso é um comportamento observável apenas nos pequenos grupos, as seitas. Mas nas grandes religiões ocorre o mesmo. A mente sectária está presente, por exemplo, tanto na Igreja Católica, que tem aproximadamente um bilhão de fiéis, como na congregação recém-inaugurada, com poucas dezenas de pessoas. Uma demoniza a outra, arvorando-se o direito de ser o povo eleito e exclusivo de Deus. As religiões, em vez de unir, estariam dividindo as pessoas? Existiria religião verdadeiramente universalista?
A pressuposição da ideia de alma não passar de algo imaginário fundamenta a crítica materialista à religião
Institucionalização da dependência O problema da manipulação consciencial aparece na articulação do discurso religioso, o qual se estabelece como discurso autoritário. O autoritarismo implícito à oratória religiosa é mascarado por uma série de artifícios. Numerosas são as estratégias persuasivas utilizadas para obter a adesão dos fiéis a propostas que não resistem a uma rigorosa análise lógica. Erros de argumentação ou falácias são abundantes na maioria dos discursos de fé. Por que as propostas das religiões (de ideais pretensamente tão positivas) têm de violar as regras da lógica e da racionalidade? Por que são impostos dogmaticamente em vez de propostos democraticamente? Muitos eventos descritos como episódios milagrosos e que estão na origem das tradições religiosas, foram, em realidade, fenômenos parapsíquicos Perturbador pode ser o elo existente entre religião e violência. Inegavelmente, o passado e o presente da Humanidade são manchados de sangue derramado pelos defensores da fé. Essa triste constatação obriga a um questionamento: a violência é algo intrínseco aos credos religiosos, ou a crendice das populações fanáticas apenas tem sido usada por outros sujeitos interessados no poder político e econômico? Parece que a religião carrega em si a semente da violência, pois a pregação da verdade absoluta exige sempre o patrulhamento ideológico e a luta pela hegemonia do número de convertidos. Os livros sagrados, a exemplo da Bíblia e do Alcorão, estão repletos de textos violentos que inspiraram guerras, inquisições e genocídios ao longo da História. Enquanto forem considerados "Palavra de Deus", esses textos continuarão a funcionar como bombas-relógio prontas a eclodir a partir das mentes sectárias. Muitos dirão que um dos maiores benefícios das religiões (e talvez uma das justificativas para sua permanência) é a pregação da paz e da justiça entre os povos. No entanto, a ideia da religião pacífica parece ser um mito, pois as religiões, historicamente, sempre fizeram apologia da tirania e da escravidão. A defesa dos direitos humanos é uma ideia secular, não religiosa. Se hoje muitos religiosos se identificam como arautos da paz é porque o mundo secularizado o exige. Mas se for verdade que a religião produz sectarismo, dependência e manipulação consciencial, teria a "paz" pregada pelos religiosos alguma substância e autoridade moral para garantir a fraternidade entre os povos? Espiritualidade: melhor que religião? No cristianismo, por exemplo, existem cerca de 33.800 seitas diferentes, todas pretensas candidatas a ser a legítima representante da "verdade única" do evangelho
Essas perguntas e observações críticas levam à conclusão de que a religião se parece com um remédio oferecido como panaceia para os males humanos, mas que produz mais efeitos colaterais do que a cura propriamente dita. Um dos argumentos mais usados pelos defensores das religiões é a defesa da moralidade. Segundo os religiosos, o desaparecimento da fé nos deuses criados pelas religiões levaria as pessoas a se permitirem todo tipo de abuso e maldade. Porém, quando se considera que as religiões conduzem ao antiuniversalismo, à manipulação em massa, à institucionalização da dependência, ao engano parapsíquico, ao discurso totalitário e à violência, o jogo se inverte e a religião é quem passa a causar mais problemas morais no mundo. Quem precisa de religião? Certamente a maioria das pessoas ainda terá, por muito tempo, necessidade das muletas consolatórias oferecidas pelas crenças religiosas. Mas, possivelmente, na medida em que o autodiscernimento e o exercício do parapsiquismo lúcido se tornarem prioridades, a religião estará com os dias contados dentro da vida de um indivíduo. Precisar ou não de religião - eis uma questão que apenas cada pessoa, após séria autoanálise, pode responder para si própria. Mesmo para aqueles que rejeitam a religião em nome do livre pensamento, um questionamento pode ser feito a partir dos estudos do teólogo e psicólogo estadunidense James Fowler, para quem a experiência de fé é simplesmente a necessidade que o ser humano tem de construir significado e eleger algum referencial definitivo para a orientação da existência. Assim, a fé não diria respeito apenas à admissão da ideia de "Deus" ou à crença em entidades sobrenaturais. É possível ter fé nas mais variadas coisas, inclusive em ideias e instituições. Partindo desse pressuposto, até onde aqueles que defendem apaixonadamente ideias antirreligiosas ou se identificam com instituições ateístas ou agnósticas estariam expressando um novo tipo de fé, aferrados a certezas e dogmas em nome da razão? REFERÊNCIAS
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