O surgimento dos homossexuais
Você provavelmente já parou para pensar: “Por que existem homossexuais?” Ou, se você mesmo tiver desejos homoeróticos, já deve ter se apercebido imerso no pensamento especulativo“Por que sou assim?”. Respostas e argumentos não faltam, desde os mais esotéricos até os científicos. Tais argumentos não eram nada satisfatórios para o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Para ele, tudo o que se diz sobre as supostas causas da homossexualidade é de uma simplicidade ingênua. Sobre isso, Foucault levanta importantes questões: o que está por trás desta vontade de saber, desta busca incessante por uma explicação? A maior parte de seus questionamentos sobre o tema se encontra em Ditos e Escritos e em A História da Sexualidade.
Foucault é eventualmente mal compreendido e , em geral, os erros de leitura em relação à sua obra decorrem de recortes malfeitos daquilo que ele efetivamente disse. Um dos pontos em que se instaura a má compreensão está na crítica que o filósofo faz em relação a alguns pontos dos movimentos de liberação gay. O que ele critica nãoéa afirmação do desejo homoerótico, o que seria estranho, posto que ele mesmo tinha orientação homossexual. O perigoso, segundo Foucault, é a afirmação deste desejo a partir de argumentos biológicos e naturalistas, ou seja, a conversão de desejo em identidade biologicamente determinada.
Em uma entrevista realizada em Toronto, em 1982, Foucault diz: “O que eu quis dizer é que, na minha opinião, o movimento homossexual hoje precisa mais de uma arte de viver do que de uma Ciência ou um conhecimento científico (ou pseudocientífico) daquilo que é a sexualidade”. Em síntese: segundo Foucault, muitos homossexuais estão por demais paralisados na busca contínua por algo que explique a causa de seus desejos, no lugar de viverem estes desejos.
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O MOVIMENTO HOMOSSEXUAL HOJE PRECISA MAIS DE UMA ARTE DE VIVER DO QUE DE UMA CIÊNCIA OU UM CONHECIMENTO CIENTÍFICO DAQUILO QUE É A SEXUALIDADE
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O gene gay – ciência a serviço de ideologias Hamer publicou na edição de 16 de julho de 1993 da revista Science um artigo intitulado Uma ligação entre marcadores de DNA sobre o cromossomo X e a orientação sexual masculina. O artigo causou impacto na imprensa da época, suscitando posicionamentos entusiasmados por parte de alguns militantes gays. Ironicamente, com igual entusiasmo reagiram alguns homofóbicos, afinal – no raciocínio deles – se há uma causa biológica para a homossexualidade, ela poderia ser curada. Curiosamente, entre entusiastas pró e antigays, quase nenhum investigou o conteúdo científico do artigo que causou tamanho tumulto. Em verdade, Hamer não havia identificado um gene gay. Seria possível dizer, no máximo, que ele transpôs as primeiras etapas que poderiam eventualmente, mas não indubitavelmente, identificar um gene gay. Com esta pesquisa, Hamer no máximo tinha uma presunção, um indício de algo, mas jamais poderíamos dizer que um gene gay foi descoberto. O fato de existirem marcadores concordantes entre trinta pares de irmãos gays pode muito bem ter diversas outras explicações que nada têm a ver com preferências sexuais. E Hamer sabia disso, mas pareceu ignorar as alternativas. Tanto que sua pesquisa foi contestada por vários trabalhos posteriores como, por exemplo, a investigação realizada em 1999, pelos médicos Rice, Anderson, Risch e Ebers, intitulada Homossexualidade masculina: Ausência de Marcadores em Xq28. Ora, na medida em que se verifica que Hamer “pulou” etapas importantes do processo científico de investigação por estar comprometido com uma ideologia (ainda que bem intencionada e preocupada com os direitos humanos), percebem-se os perigos que emergiram a partir de tudo isso, estigmatizando homens não-homossexuais portadores do “gene suspeito” Xq28, rotulando-os como “enrustidos”, e cobrando-lhes a confissão social de seus supostos desejos. |
BIOLOGISMO HOMOSSEXUAL
O posicionamento cauteloso diante das causas da homossexualidade irrita principalmente algumas correntes militantes, que preferem apregoar o determinismo biológico como uma forma de convencer que a homossexualidade é natural e, por conseguinte, deve ser aceita. Que a homossexualidade é natural isso deveria ser evidente, pois o que não falta na natureza são exemplos de relações homossexuais entre animais. Além disso, o argumento que contesta a homossexualidade a partir da natureza é falho pois, se fôssemos seguir firmemente o que é natural, não forçaríamos a existência da monogamia e, convenhamos, sequer vestiríamos roupas.
O que alguns militantes não percebem é que a defesa do desejo homossexual como uma identidade biologicamente determinada pode ser combustível perfeito justamente para os homofóbicos. Afinal, se provamos que o desejo homossexual é fruto de singularidades físicas, tudo isso poderia ser tratado por terapêuticas, do mesmo modo que corrigimos a miopia ou outra singularidade fisiológica incômoda. Foucault, mais de uma vez, apontou para o fato de que a vida é uma escolha entre perigos. Não existe um “caminho ideal”, mas sim riscos mais ou menos administráveis. Apostar num determinismo biológico que, por si só, seja fundamento para o desejo homoerótico é um perigo, pois não implica necessariamente em aceitação – os homofóbicos podem argumentar que tal condição seria uma doença, uma aberração medicamente tratável.
![]() Para Freud, a hossexualidade estava ligada a diversas razões, não podendo ser determinada por uma causa única |
Foucault critica, em primeiro lugar, a falácia da causa única, seja ela qual for, física ou psicológica; em segundo lugar, os perigos decorrentes da abordagem da homossexualidade como uma doença biológica passível de tratamento. Neste sentido, podemos observar ao menos uma interseção entre Foucault e Sigmund Freud (1856-1939), não obstante as discordâncias em outras esferas. Freud também era contrário à ideia da causa única, muito embora se pense – equivocadamente – que o pai da psicanálise tentava explicar a homossexualidade a partir do problema de um pai ausente e uma mãe dominadora, sempre. A leitura dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, publicado pela primeira vez em 1908, mostra o que Freud efetivamente disse:
“Nem a hipótese de que a inversão é inata, nem tampouco a conjectura alternativa de que é adquirida explicam sua natureza. No primeiro caso, é preciso dizer o que há nela de inato, para que não se concorde com a explicação rudimentar de que a pessoa traz consigo, em caráter inato, o vínculo da pulsão sexual com determinado objeto sexual. No outro caso, cabe perguntar se as múltiplas influências acidentais bastariam para explicar a aquisição da inversão, sem necessidade de que algo no indivíduo fosse ao encontro delas. A negação deste último fator, segundo nossas colocações anteriores, é inadmissível.”
Está muito claro que, para Freud, é insatisfatório definir uma única causa para a existência de pessoas que desejam o mesmo sexo. Como se vê, Freud ainda estava preocupado com a questão da causa, muito embora deixasse claro, ao longo de suas pesquisas, que provavelmente dois homossexuais não desejam o mesmo sexo pelas mesmas razões.
A CIÊNCIA A SERVIÇO DE IDEOLOGIAS POLÍTICAS
A investigação histórica deixa claro o quanto alguns discursos científicos se encontram atrelados a ideologias específicas, inviabilizando uma suposta pureza e tornando a Ciência um instrumento a serviço de grupos particulares. Nestes casos, não haveria uma relação excludente entre Ciência e ideologia; haveria, isso sim, uma retroalimentação. Se é possível uma Ciência de fato pura e isenta de ideologias, isso é assunto para muita discussão – e outro artigo.
No que tange aos homossexuais, só o fato de nos referirmos a um desejo (gostar do mesmo sexo) como uma identidade (“ser” algo) já conduz a interpretações equivocadas, a partir das quais se infere que existem comportamentos comuns, características de personalidade, destinos específicos ligados a uma “essência homossexual”. Seja na forma de críticas (“homossexuais são mais promíscuos e traem mais”), seja na forma de elogios (“homossexuais são mais sensíveis e inteligentes do que heterossexuais”), vejo o que está implicado neste discurso: a ideia de uma essência inata, a ideia de uma especificidade biologicamente determinada que torna todos os desejantes do mesmo sexo como fazendo parte de um subconjunto modelar. Até mesmo entre alguns grupos de militantes gays contemporâneos, o mais importante parece ser a afirmação de uma identidade (“eu sou gay”) do que as implicações do desejo (“o que eu desejo? Como posso experimentar a vida a partir dos meus desejos?”) e, assim, deixam-se de buscar as diferenças que singularizam (“no que eu, gay, difiro dos outros gays?”). Evoca-se que as pessoas “saiam dos armários” como uma obrigatoriedade ideológica. O homem homossexual que “não se declara” é tido como covarde e mentiroso, pois o desejo deve ser tornado público e posto a serviço de uma ideologia.
Nas situações confessionais (desde a confissão sacerdotal até a Psicanálise), o sujeito desejante produz um discurso sobre sua própria sexualidade, que será consequentemente interpretado por um “sujeito suposto saber”, uma autoridade. Ocorre que, para Foucault, a verdade revelada neste processo não se trata de uma descoberta, e sim de uma produção. Trata- se de um espaço de veridição, ou seja, de construção de um discurso que estará vinculado a uma ideologia e a interesses que estão além do sujeito desejante, incluindo este sujeito e dissolvendo toda a sua singularidade num conjunto de universais que ajustam as pessoas a um todo que confirma – e na verdade constrói – uma identidade.
A PARADA DO ORGULHO GLBT, mais conhecida como a Parada Gay, é realizada anualmente em diversas regiões de Portugal e do Brasil. A primeira realizada no Brasil foi em 1996, em São Paulo. O evento deste ano na cidade já alcança a 16ª edição e acontecerá em 10 de junho, com previsão de público recorde, como em todas as edições. A Parada Gay (SP) já chegou a reunir 3,5 milhões de pessoas
![]() A homossexualidade é datada desde a Grécia antiga, e não causava espanto. Passou a ser considerada uma doença misteriosa, sendo registrada no Catálogo Internacional de Doenças no século XX. Essas implicações e pré-conceitos só foram abandonados após a década de 1990, quando ela deixou de ser considerada uma patologia |
O SURGIMENTO DO HOMOSSEXUAL
Um dos pontos mais provocativos da obra de Foucault está em sua afirmação de que “o homossexual” enquanto categoria tem data de nascimento: 1870, com o artigo de Carl Westphal (1833-1890), As Sensações Sexuais Contrárias. Aqui, é importante salientar o que Foucault não disse, a fim de dirimir eventuais mal entendidos: ao dizer que o “homossexual” tem data de nascimento, isto não significa que homens não faziam sexo com homens antes de 1870. A diferença fundamental é que, a partir do século XIX, o discurso vigente falava a respeito de “uma espécie”, “uma categoria” de criaturas a quem chamamos de “o homossexual”. Antes de 1870 havia a recriminação contra atos homossexuais, mas supostamente não se aventava que existisse algo como o homossexual substantivado. Um indivíduo que praticasse o coito homoerótico não era rotulado como pertencente a uma subclasse específica da humanidade, e bastava a ele que – após o ato confessional – se redimisse a partir de algumas práticas que o “purificariam” do ato. O sujeito não era algo, ele tinha feito algo. O investimento das instituições de poder vigentes (a Igreja, mais especificamente) nesta direção se limitava a prescrever orações como forma de redenção contra o ato dito “pecaminoso” (embora nos séculos XVI e XVII muitos tenham sido mortos pela Inquisição, por conta de práticas homossexuais). A partir de 1870, ocorre uma mudança de paradigma, nasce o conceito de “o homossexual”, uma entidade singular essencialmente determinada, alguém com uma diferenciação de desejo que abarcava toda a inteireza de seu ser.
![]() Hoje, a questão da homossexualidade vai além do desejo, e se vincula a uma ideologia que gira em torno de interesses de um grupo, criando uma identidade universal para os homossexuais |
Quando Foucault afirma que “o homossexual” é construído, ele não está afirmando que as pessoas se tornam homossexuais por conta de influências ambientais. O fato é que se descobrir desejando o mesmo sexo a partir da década de 1870 passou a ter uma implicação diferenciada: o sujeito não estava apenas tendo um desejo, mas ele se descobria parte de um subconjunto da humanidade. Esta marca, este estigma, recaía sobre o sujeito como um ferro de marcar gado. Afinal, ele pertencia a uma classe que havia se tornado alvo de estudo científico. Não era ele quem dizia de si, de seu desejo, e sim as autoridades.
O começo do século XX foi marcado pelo surgimento de diversas “tecnologias do sexo” e “ciências da sexualidade”, que se encontravam assaz comprometidas com o objetivo de preservar e promover a força laboral produtiva e procriadora, servidora de um sistema capitalista em desenvolvimento cujo centro fundamental era a família burguesa. Deste modo, homossexuais evidentemente incomodavam por constituírem uma anomalia no sistema que exigia a procriação. O homossexual foi transformado numa “espécie” ameaçadora da máquina – como se uma minoria que não se reproduz ao praticar sexo fosse realmente induzir a humanidade à extinção!
Com a psiquiatrização da homossexualidade no fim do século XIX, surgiu o pensamento equivocado de que tudo no homossexual se resume ao sexo, ele está imerso em sua própria sexualidade e, deste modo, as identidades são construídas a partir desta crença. Tudo se resume a este pequeno detalhe. Conforme diz Foucault:
“O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém como natureza singular.”
Foucault não nega eventuais indícios biológicos para as preferências sexuais. Ele jamais afirma que não existe um fator biológico; o que ele rejeita é a militância pautada e justificada na Biologia. A questão é: a que serve este conhecimento? Com qual ideologia ela está implicada? São perguntas que não permitem uma atitude ingênua.
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A DIFERENÇA ENTRE OS TERMOS “GAY” E “HOMOSSEXUAL” ESTÁ NO FATO DE QUE “HOMOSSEXUAL” ERA OBJETO DE CONHECIMENTO DAS BIOCIÊNCIAS E GAYS, UM GRUPO COM POSICIONAMENTO POLÍTICO
No início dos anos 1980 e até sua morte, Foucault irá declarar – em mais de uma ocasião – que a grande questão não édescobrir-se gay, e sim tornar-se gay. Este é outro posicionamento mal compreendido em seu discurso. Ele não está dizendo que todos deveriam ser homossexuais, até porque para Foucault, “homossexual” e “gay” não são sinônimos. É preciso, neste ponto do texto, diferenciar o termo “gay” de “homossexual” pois, apesar de aparentarem relação de sinonímia, possuem uma notável diferenciação histórica.
HOMOSSEXUAL VERSUS GAY
“Homossexual”, conforme já vimos, é um termo que surge no contexto do final do século XIX, e ilustra uma suposta categoria de indivíduos portadores de uma doença misteriosa. A construção conceitual “colou” com tamanha força, que apenas no final do século XX a homossexualidade foi retirada do rol de distúrbios listados pelo Catálogo Internacional de Doenças. Até a década de 1960, “homossexual” foi o termo utilizado, carregado de implicações médicas, legais, psicológicas.
Mas, nos anos 1960, paulatinamente alguns homens e mulheres passaram a se referir a si mesmos como gays, do inglês “alegre”, o que provocou consternação em muitas pessoas de sexualidade dita “normal”, uma vez que um vocábulo comum tinha sido “sequestrado” por um assim dito “grupo pervertido”. A diferença mais substancial entre os termos “gay” e “homossexual” está no fato de que, enquanto a categoria “homossexual” era um objeto de conhecimento das biociências, os gays eram um grupo específico que afirmava ostensivamente um posicionamento político. Um grupo que lutava por seus direitos, pela descriminalização, um grupo que lutava em prol do respeito às diferenças. “Ser gay”, portanto, seria questão de orgulho, e não de patologia. Seria uma postura de resistência contra as normatividades, uma resistência na qual o sujeito, dizendo-se gay, está a dizer: sou feliz desejando o que desejo, e não me sinto mal por isso. Do mesmo modo que os movimentos feministas conquistaram espaço para as mulheres ao longo dos mesmos anos 1960, os movimentos gays se negaram a assumir para si a representação de sujeitos portadores de uma patologia. A partir deste ponto de vista, nem toda pessoa que deseja o próprio sexo é gay. Ela é alguém que deseja o próprio sexo, e apenas isso: um homossexual. Mas ser gay é uma conquista pessoal, é assumir uma postura política, é lutar por um mundo em que as diferenças são respeitadas. Para Foucault, nem todo homossexual é gay, e não o será enquanto permanecer paralisado em sentimentos de culpa e submisso a um discurso patológico.
![]() Para Foucault, ser gay está além de simplesmente ser ativista e lutar pelo seu espaço. Mas é aproveitar a sua diferença para criar diferentes estilos de viver a vida e novas relações |
Ao longo de Ditos e Escritos, Foucault aponta para o fato de que é preciso procurar ser gay, ou seja, assumir uma postura ativista, militante, que luta por um lugar ao sol. Mais do que simplesmente copiar os modelos heteronormativos, “ser gay”, segundo Foucault, é se aproveitar de sua diferença a fim de criar novas formas de relação, inventar novos estilos de vida. “Ser gay” não se resumiria, portanto, a batalhar por uma inserção no estado vigente das coisas, e sim uma forma de alterar este estado vigente. O filósofo, em momento algum, pretende limitar sua abordagem à conquista de direitos existentes, como o direito ao casamento entre homossexuais, mas como uma militância sem fim, que vai além do que existe atualmente. Sobre a questão do casamento gay, por exemplo, Foucault reconhece que tal conquista é importante, mas que limitar a luta à mera reprodução do modelo conjugal heteronormativo seria um empobrecimento, uma perda de oportunidade de realizar mudanças significativas. O que ele propõe é algo muito mais revolucionário do que muitos militantes gays poderiam sequer aventar: a utilização da própria condição marginal como uma forma de não apenas ser aceito pela sociedade, mas como uma forma de transformar a estrutura da sociedade.
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POR MAIS QUE O GÊNERO PAREÇA SER UM COMPONENTE FUNDAMENTAL DE NOSSAS IDENTIDADES, SEJAM ELAS “GAYS” OU “HETEROS”, NÓS SOMOS MUITO MAIS DO QUE NOSSOS GOSTOS SEXUAIS
Todo programa de invenção deveria ser aberto, segundo o filósofo. Em sua entrevista intitulada A Amizade como Modo de Vida, ele deixa claro que todo programa deve ser vazio. Recusando-se a prescrever o futuro e a assumir o papel de “guru gay”, ele também exprimia diversas reticências em relação aos partidos políticos, salientando a importância de movimentações espontâneas, não necessariamente ligadas ao governo:
![]() Foucault acredita que o casamento gay é uma importante conquista, mas a luta deve estar muito além da reprodução do modelo heteronormativo |
“Desde o século XIX, as grandes instituições políticas e os grandes partidos políticos confiscaram o processo de criação política; quero dizer por aí que eles tentaram dar à criação política a forma de um programa político, a fim de se apoderar do poder. Penso que se deve preservar o que aconteceu nos anos 1960 e no início dos anos 1970. Uma das coisas que é preciso preservar, na minha opinião, é a existência, fora dos grandes partidos políticos, e fora do programa normal ou ordinário, de uma certa forma de inovação política, de criação política e de experimentação política. É um fato que a vida cotidiana das pessoas mudou muito entre o início dos anos 1960 e agora, e minha própria vida mostra isso. É evidente que não devemos essa mudança aos partidos políticos, mas a numerosos movimentos. Esses movimentos sociais de fato transformaram nossas vidas, nossas mentalidades e nossas atitudes, assim como as atitudes e mentalidades de outras pessoas – pessoas que não pertenciam a esses movimentos.”
Por fim, por mais que o gênero pareça ser um componente fundamental de nossas identidades, sejam elas “gays” ou “heteros”, nós somos muito mais do que nossos gostos sexuais – e é curioso notar como, em termos de gostos, o desejo sexual parece ter tanta importância em nosso mundo, a ponto de ninguém pensar em se definir ou se rotular porque gosta, por exemplo, de comer ostras ao vinho ou beber suco de manga. As palavras que usamos e os pensamentos que fomentamos definem as “coisas” que somos, como uma construção contínua da realidade, que será mais ou menos rica a depender de nossa militância individual em prol de um mundo mais rico em termos de possibilidades relacionais. Um mundo em que as diferenças são respeitadas, ainda que não inteiramente compreendidas. A bandeira do arco-íris, deste modo, seria mais do que a representação de um desejo sexual. Seria a representação daquilo que vem após as tempestades, um sinal de aliança e de coexistência possível das diferentes cores, num mundo que viabilize o encontro e a amizade entre as pessoas.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel – Os Anormais – Martins Fontes.
FOUCAULT, Michel – História da Sexualidade – A Vontade de Saber – Graal, 2007.
FREUD, Sigmund – Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – Imago.
PRACONTAL, Michel – A Impostura Científica em Dez Lições – Editora UNESP.
CASTRO, Edgardo – Vocabulário de Foucault – Editora Autêntica.








