Limites: prazer e realidade

31/08/2013 13:46


Como lidar com o "ter para ser" e não mais "ser para ter"? Quais os limites e as possibilidades desta transformação? Como nos conduzir? O que falar para nossos filhos?

Por Paulo Quinet
 

 
 

 

 

Segundo Freud, o funcionamento mental primário visa, unicamente, à descarga da pulsão, prazer, ou à busca da satisfação direta da realização do desejo, enquanto que o segundo atende às necessidades de sobrevivência

Em 1911, Freud publica o seu trabalho sobre “Os dois princípios do funcionamento mental”. De 7 a 10 de setembro de 2011, psicanalistas do Brasil se reunirão para debater o tema no XXIII Congresso da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi).

Freud utilizou o seu modelo de aparelho psíquico da primeira tópica para, baseado na topografia, dividir o funcionamento mental em dois sistemas: inconsciente e consciente – este último englobando tanto o pré-consciente como o consciente. Na ocasião, o psicanalista atribuiu características funcionais diferentes a cada sistema.

O primeiro, ou primário, tendo suas cargas móveis, catexias (energias) livres, visaria unicamente à descarga da pulsão, prazer, ou à busca da satisfação direta da realização do desejo. O segundo, ou secundário, já com suas catexias ligadas a representações, apesar de também buscar a descarga pulsional e o prazer, o faz de forma indireta, a fim de atender às necessidades de sobrevivência, subordinando o indivíduo à realidade externa ao inseri-lo no social e na cultura.

 

Freud utilizou o seu modelo de aparelho psíquico da primeira tópica para dividir o funcionamento mental em dois sistemas

 

Cabe destacar, como à época o fez O o Rank, a proximidade destes princípios com a visão de Schopenhauer, apontando para as influências deste pensador em Freud. E, tomando a afirmação freudiana de que “o Ego é antes de tudo um Ego corporal”, por que não caminhar um pouco mais e encontrar, também, algo de Nietzsche, que com seu registro fisiológico da concepção de “corpo”, na qual este, corpo, subsume as atividades mentais em todo o organismo, marca a ruptura com a psicologia racional?

Tendo o corpo como “verdade”, fio condutor do conhecimento, é, em Nietzsche, a “vontade de potência” e, em Freud, “a pulsão” o que empurra, sob pena de morte, o indivíduo a tornar-se sujeito. Sujeito de um constructo, um mundo construído para atender ao seu “corpo”, pois viver é a incansável tentativa de adequar o mundo a si, ainda que por meio de “verdades falsificadoras”, sem as quais o homem não conseguiria viver. Se sublimar é preciso, sublimemos para viver. Construamos: conceitos, normas, ideais, etc.; imprescindíveis, posto que abandonar tais ficções seria o mesmo que decretar a morte do sujeito.

Porém, do nascimento do indivíduo ao surgimento do sujeito, há um longo caminho que deverá ser trilhado. Da satisfação imediata – realização alucinatória do desejo – ao processo de pensar, à capacidade de representação simbólica, passando pela fantasia inconsciente e pela fantasia consciente, é na linguagem que encontramos o guia deste percurso. Linguagem na qual se insere não apenas a língua, mas também o gestual, sons, odores, crendices, entre outros, que caracterizam cada comunidade, fornecendo-lhe uma marca única, seus valores, sua cultura, sua identidade.

A vinculação das energias pulsionais (catexias) ao universo de representações comunitárias delimita suas possíveis e passíveis formas de expressão, exigência normativa própria de cada comunidade, a lei.

Mas, a bem da verdade, não só delimita, pois também abre a oferta de possibilidades sublimatórias de satisfação. Ficando, assim, a maior ou menor estabilidade destas, várias e diversas comunidades, por conta das oportunidades de realizações sublimatórias que ofertam aos seus membros.

Nos dias de hoje 
O século XX e a primeira década do XXI se caracterizam por grandes e velozes transformações, avanços tecnológicos mais expressivos do que em qualquer outra época. O mundo se globalizou, a comunicação se dá em tempo real. Valores subjetivos, arraigados a tradições comunitárias, diluem-se no confronto globalizado de “verdades culturais”, perdendo seu poder para o mercado de consumo.

O tempo do “ser” cede cada vez mais espaço para o domínio do “ter”. Borram-se, cada vez mais, os limites entre os valores de referência subjetivos e a medida de valor pela posse de bens materiais.

A construção dos ideais comunitários, base dos ideais do Ego e da identidade do sujeito, vem se assentando progressivamente em pressupostos externos. Inatingíveis para a maioria, apesar de participarem desta “louca corrida narcísica”, pela tentativa de aquisição de corpos e bens valorizados, só lhes sobra a frustração, o sentimento de baixa autoestima e a depressão.

A transposição para o cotidiano destes conflitos emocionais acentua o processo competitivo, a arrogância, a agressividade e a violência, características do acirramento de primitivos processos defensivos narcísicos, em detrimento de realizações narcísicas sublimadas.

O desgaste e a inadequação dos modelos sociais tradicionais jogam-nos em um limbo de questionamentos... Como lidar com o “ter para ser” e não mais “ser para ter”? Quais os limites e as possibilidades desta transformação? Como nos conduzir? O que falar para nossos filhos?

São questões como estas que, abordadas aqui em uma breve pincelada, se impõem de forma contundente a um pensar mais profundo.

 

Paulo Quinet é membro da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) e diretor da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi)

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