Limites na infância e adolescência
A dificuldade que os pais sentem em estabelecer limites pode advir de fantasias criadas antes mesmo do nascimento da criança. O limite deve ser entendido de forma mais ampla e num sentido restrito do termo
Por Rosa Lang
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No final do século XVIII, a infância passou a ter um lugar de destaque na família e na sociedade. Até então, era vista como um adulto em miniatura. Com a descoberta de Freud de que “os histéricos sofriam de reminiscências” (1893), o foco da pesquisa da origem da doença psíquica se deslocou do presente para o passado do paciente.
O estudo desses processos inconscientes e da gênese dos conflitos neuróticos resgatou o infantil no adulto, com a reconstituição dos acontecimentos infantis. Com o conhecimento dos processos primários, do desenvolvimento da libido (oral, anal e fálica), da amnésia infantil, agressão e repressão, Freud abriu as portas ao mundo mental da criança e o seu adoecimento psíquico.
À medida que as descobertas da Psicanálise avançavam, surgia nos psicanalistas o interesse na adoção de medidas educativas que pudessem prevenir os sintomas neuróticos. O conceito de repressão, sexualidade e agressão contido na primeira tópica do aparelho psíquico teve uma repercussão na educação das crianças na época.
A partir da segunda metade do século XX, a sociedade sofreu grandes mudanças e, dentre estas, a repressão passou a ser vista como sinônimo de frustração e neurose: a liberdade do sexo e maior permissividade ao comportamento agressivo, sendo o slogan dos jovens “é proibido proibir”. E qualquer limite deveria ser rompido.
Limites na escola |
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O bebê recebe as projeções e transferências dos pais, que ajudam na constituição do seu vínculo parental e familiar, mas que podem criar uma barreira afetiva que distorce a comunicação mãe-bebê
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No entanto, Freud (1911) fala da importância do domínio do Princípio do Prazer pelo Princípio da Realidade na organização psíquica e aponta como as transformações do ego prazer em ego realidade permitem à criança ser capaz de adiar satisfações tão necessárias à vida.
No entanto, isto só seria possível com a superação do princípio do prazer pela recompensa de não perder o amor do objeto. Entretanto, completa Freud, “falha, se uma criança mimada pensa que possui esse amor de qualquer jeito e não pode perdê-lo, aconteça o que acontecer” (p. 284). O amor sem limites é importante na primeira infância, quando o bebê precisa de uma atenção integral, contudo, na medida em que vai se tornando sujeito inserido numa sociedade, precisa introjetar a lei e as normas sociais para o convívio com o outro, ou seja, sair do narcisismo em direção à relação objetal.
A dificuldade que os pais sentem em estabelecer limites pode advir de fantasias criadas antes mesmo do nascimento da criança – o bebê idealizado. O bebê, ao nascer, recebe as projeções e transferências materna e paterna. Essas projeções e transferências são estruturantes quando buscam identificar no bebê semelhanças com os outros membros da família. Neste sentido, ajudam na constituição do vínculo parental e familiar.
Freud fala da importância do domínio do Princípio do Prazer pelo Princípio da Realidade na organização psíquica
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A sociedade passou por mudanças. Antigamente, a criança era vista como um adulto em miniatura
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Contudo, nem sempre ocorre assim. Os lutos não elaborados, a rivalidade entre irmãos, segredos, doenças familiares, culpas e outros conflitos podem ser reativados com a gravidez e o nascimento desse bebê. Estes fantasmas criam uma barreira afetiva na percepção do bebê real, distorcendo a comunicação mãe-bebê, interferindo na capacidade de reverie (imaginação) da mãe.
O limite deve ser entendido de forma mais ampla e num sentido restrito do termo. O primeiro trata da capacidade parental de atender às necessidades vitais do bebê de conter e traduzir as angústias primárias e sustentar emocionalmente o bebê. Estas sustentação e contenção contínua funcionam como este continente-limite, em que se criam as condições do psiquismo se desenvolver plenamente, principalmente no primeiro ano de vida. O bebê, no contato com o corpo materno, vai estabelecendo as fronteiras entre o eu e o mundo externo; base para a formação da representação mental de um corpo contornado por eu-pele que o delimita do não eu. E a realidade fora da órbita simbiótica passa a ter existência. Nos chamados transtornos globais do desenvolvimento, a percepção deste aspecto corporal não pode ser totalmente alcançada. A criança mantém a fantasia de um corpo único – dois em um.
Frustração e prazer
Na medida do crescimento físico e emocional, o bebê passa a explorar o mundo ao redor e outras necessidades vão surgindo. O bebê que tudo podia começa a se dar conta dos primeiros limites – dos primeiros nãos. A relação prazerosa com a mãe cria condições de o bebê suportar melhor a frustração e adiar o prazer. No entanto, quando as transferências e projeções alienantes ocorrem e o bebê não é visto, a qualquer sinal de frustração ele reage de maneira intensa com choro, crises de birra, raiva, já que a resistência à frustração é mínima. A partir do segundo ano de vida, com a aquisição do domínio motor, a criança reage à dor e à frustração com uma hiperatividade física que funciona como uma comunicação, da mesma maneira que o choro foi um dia. Na medida do desenvolvimento psíquico, a criança passa a ter outras formas de elaborar a frustração, muitas delas próprias do crescimento. O brincar só ou na presença do outro é um desses recursos saudáveis da criança, que passa a ser o termômetro de saúde mental.
A difi culdade que os pais sentem em estabelecer limites pode advir de fantasias criadas antes mesmo do nascimento da criança
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Na medida em que vai se tornando sujeito inserido numa sociedade, a criança precisa aprender as normas sociais. No entanto, os pais sentem difi culdades em estabelecer limites
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O limite neste momento do desenvolvimento tem o papel de proteção física, permitindo que gradativamente a introjeção do não ocorra em um processo imitativo dos pais.
O aparecimento da crise da oposição é a expressão desta identificação e, ao mesmo tempo, significa uma oposição ao objeto externo numa forma de autoafirmar o desejo de ser. Não ao objeto externo e, sim, para si mesmo.
O limite tem agora um sentido restrito. Visa à aquisição de introjeção da lei e da identifição- Édipo. A introjeção e a identificação farão parte do ego ideal pela saída do narcisismo primário e constituição do superego infantil.
A dificuldade de pôr limites que muitos pais sentem vem da culpa pela falta de tempo de se dedicar aos filhos. Eles acabam sendo permissíveis, na tentativa de compensar o incompensável. E, em alguns casos, acabam distorcendo a relação em que o ter afeto é substituído por ter presentes. O atendimento ilimitado aos desejos do filho e a incapacidade de manter firme a proibição cria distorção no relacionamento pais e filho, principalmente no aspecto do dar e receber. A inconstância parental em sustentar a lei mina a confiança da criança no objeto, que tem a função de ser um pilar no qual ela precisa para se constituir como sujeito.
• Quem ama, educa •
Psicoterapeuta de grande sucesso clínico e literário, Içami Tiba defende a adoção de regras na educação. Para ele, o bom e o mau exemplo influenciam a formação de crianças e adolescentes. Ele critica a falta de limites na criação dos filhos. Devido às atribulações da vida moderna, incluindo aqui a culpa pela falta de tempo, os pais não exigem comprometimento e não tornam seus filhos responsáveis. “Os filhos que não cuidam das próprias coisas, dos próprios pertences como brinquedos, roupas, entre outros, não vão cuidar dos pais na velhice. Essa educação tem que começar desde cedo, é o que eu preconizo no livro Quem Ama Educa, não simplesmente prover, cuidar e perdoar”, diz o autor. Segundo ele, os filhos, hoje, crescem como príncipes herdeiros, e não como sucessores empreendedores, que é o que a sociedade precisa. |
Os limites no final da Adolescência
São os limites impostos pelo orgânico, o anímico, o familiar e o social que marcam a adolescência, particularmente a sua etapa final, e que impactam a vida emocional, podendo gerar comportamentos defensivos
Por Gleyp Costa
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Em 1977, a OMS definiu como adolescência a etapa da vida compreendida entre os 10 e os 20 anos de idade – período geralmente subdivido em três fases pelas estatísticas de saúde pública: inicial (10 a 13 anos), média (14 a 16 anos) e final (16 a 20 anos). Contudo, atualmente, a tendência é situá-la entre os 15 e os 24 anos, idade em que uma parte expressiva dos filhos ainda reside com os pais e deles depende economicamente. Além desse prolongamento da adolescência, consta-se um apagamento de suas fronteiras, que se estabelece em consonância com a progressiva liquidez dos vínculos humanos, apontada por Bauman (2003) em sua análise sociológica da pós-modernidade. Como resultado, o termo “adolescência” tornou- se sinônimo de comportamentos característicos das dificuldades inerentes a essa etapa crucial do desenvolvimento, entre os quais se destaca a desobediência aos limites. Não obstante, são os limites impostos pelo orgânico, o anímico, o familiar e o social que marcam a adolescência, particularmente a sua etapa final. Neste trabalho, vamos abordar alguns desses limites e seu impacto na vida emocional do adolescente, gerando, em muitos casos, comportamentos defensivos.
Um importante limite se impõe ao adolescente por volta dos 18 anos, em consequência da culminação do processo de destituição da autoridade paterna, quando então se vê na contingência de renunciar à ilusão de contar para sempre com um pai supridor e substituí-lo por outro, cuja tarefa consiste tão somente em sustentar palavras. Essa mudança ocorre simultaneamente com o fortalecimento do erotismo genital, em boa medida, até então, investido no crescimento do corpo e experimentado sob a forma de gozo orgânico. A partir desse momento, rompe-se o limite determinado pela discrepância, vigente desde o início da vida, entre a pulsão e a capacidade de satisfazê-la, tornandose o seu desenlace através do coito impostergável. Com o descenso do ideal endogâmico, o adolescente ingressa em um novo espaço conotado com um signi ficado diferencial a partir do estabelecimento de metas ligadas às atividades laborais e ao amor em um contexto extrafamiliar (Maldavsky, 1992).
Impacto e os desdobramentos anímicos do final da adolescência
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O caminho do crescimento
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Segundo a OMS, adolescência está entre os 10 e os 20 anos de idade. No entanto, a tendência é situá-la entre os 15 e 24 anos, pois é grande o número de jovens que ainda dependem economicamente dos pais
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No entanto, o sucesso nessa incursão em espaços e vínculos extrafamiliares somente é atingido após o percurso de um caminho difícil ao longo das etapas anteriores da adolescência, com barreiras que cobram, para serem ultrapassadas, a elaboração de lutos, o estabelecimento de novas representações, a constituição de novas identificações e, como meta mais exitosa, o acesso a formas de maior complexidade nas relações com o outro – uma conquista que institui a alteridade e, por consequência, a genitalidade adulta. Quando, então, tudo o que era percebido como quantidade se organizará como qualidade psíquica, e o desejo buscará o além de mim. Nessa caminhada, o indivíduo não encontrará jamais a satisfação plena e definitiva, mas construirá sentidos para a sua vida em uma gama infinita de possibilidades na sua relação com o desconhecido outro. Nesse respeito pelo desconhecido, nascem a ética e a hospitalidade no relacionamento humano. No plano amoroso, o princípio de autoconservação se entrelaça com o princípio de conservação da espécie sob a égide da pulsão sexual (Levinas, 1961; Ventura e Royo, 1994; Derrida, 2003; Nosek, 2009).
Ao mesmo tempo, o pré-consciente se reestrutura com base na realidade consensual, admitindo a incompletude humana e o juízo sobre a inevitabilidade da morte, particularmente após a perda de entes queridos que, a partir dessa etapa da vida, começam a ocorrer naturalmente. Isso é possibilitado pela hegemonia do ego real definitivo e do juízo de existência conferido por esse desenvolvimento egoico, quando, então, o indivíduo adquire a capacidade de sublimar as aspirações pré-genitais, as quais vão gerar a pulsão social, que reinveste a representação grupo no contexto laboral e institucional.
Não obstante, essa abertura para o universo exogâmico não raro revela impasses e disfarces, os quais se expressam, de um lado, pelo estancamento libidinal e, de outro, pela pseudomaturidade como forma de evitar as exigências da vida adulta. Nessa linha, o esporte, a arte, a religião e até mesmo o estudo são canais que, muitas vezes, facilitam essa fuga. Por outro lado, o uso exagerado de mecanismos de defesa, como a desmentida e a desestimação, pode gerar, com o tempo, graves manifestações psicopatológicas, entre as quais psicoses, perversões e enfermidades psicossomáticas.
Grande parte dos indivíduos não consegue superar os limites físicos e emocionais do final da adolescência, determinando o surgimento de sintomas que tendem a se agravar na vida adulta
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O termo “adolescência” tornou-se sinônimo de comportamentos característicos das dificuldades inerentes a essa etapa crucial do desenvolvimento
Tipos de libido
A libido estancada pode ser de dois tipos: narcisista e objetal. No estancamento da libido narcisista, a angústia se apresenta como pânico hipocondríaco, prevalente nos adolescentes que desenvolvem condutas aditivas. No estancamento da libido objetal, um sadismo irrefreável não tem objeto sobre o qual recair, promove um tipo particular de afeto tóxico e gera uma angústia violenta que não pode ser processada, se transformando em estado letárgico, no qual falta o matiz afetivo que confere qualidade aos processos pulsionais. Entretanto, na maioria das vezes, essas manifestações dos estados de êxtase libidinal narcísica e objetal são episódicas, não chegando a se estruturar como quadros estáveis (Almasia e Scokin, 1994).
De fato, a desmentida da perda do pai provedor implica um esforço por conservar uma posição homossexual, sendo que, no caso da mulher, a meta geralmente é feminilizar a figura paterna. Os adolescentes se rebelam não apenas contra o que os pais procuram sustentar com suas palavras e certas normas impostas pela sociedade, mas também contra seus próprios processos intrapsíquicos que percebem conduzi-los a uma vida adulta inevitável (Maldavsky, 1992).
• Reelaboração do narcisismo • |
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REFERÊNCIAS
ALMASIA, A. e SCOKIN, M. S. “Transformaciones en la adolescencia media”. In: NEVES, N. e HASSON, A.
(1994). Del suceder psíquico: Erogeneidad y estructuración del yo en la niñez y la adolescência. Buenos Aires: Nueva Visión.
BAUMAN, Z. (2003). Amor líquido: Acerca de La fragilidad de los vínculos humanos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
DERRIDA, J. “Desconstruindo o terrorismo”. In: BORRADORI, G. (2003). Filosofi a em tempo de terror: Diálogos com Habermas e Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
FREUD, S. (1905[1901]). Fragment of an analysis of a case of hysteria. S.E., V. 7.Londres: Hogarth Press, 1975.
_______ (1911). Psycho-Analytic notes on an autobiographical account of a case of paranoia (dementia paranoides). S.E., V. 12. Londres: Hogarth Press, 1975.
LEVINAS, E. (1961). Totalidade e infi nito. Lisboa: Edições 70, 1988.
MALDAVSKY, D. (1992).Teoria y clinica dos processos tóxicos: Adicciones, afecciones psicossomáticas, epilepsias. Buenos Aires: Amorrortu.
NOSEK, L. (2009). “Corpo e infi nito: notas para uma teoria da genitalidade”. 46º IPA Congress, Chicago.
VENTURA, A. e ROYO, S. “Adolescência tardia”. In: NEVES, N. e HASSON, A. (1994). Del suceder psíquico:
Erogeneidad y estructuración del yo en la niñez y la adolescência. Buenos Aires: Nueva Visión.
Gleyp Costa é membro titular e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)