Freud e a Religião

07/12/2018 00:20

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Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira, a perda de nossa ilusão de estarmos no centro do cosmos gerada pelas descobertas de Copérnico e o reconhecimento pleno do heliocentrismo; a segunda, a “degradante” descoberta darwiniana da evolução das espécies, que deu a nosso narcisismo a “má notícia” de que não somos criaturas saídas das mãos de um deus, mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados; e, em terceiro lugar, a própria psicanálise freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas do que por princípios racionais.

 

Mas a ferida narcísica que Freud surgiu para infligir talvez seja mais profunda do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que queriam continuar a crer que são os “favoritos da Criação” e que havia um “plano divino” dedicado a construir a felicidade humana… Como diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à la Schopenhauer,  “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”…

 

A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:

 

“os elementos, parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)

 

Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos.  Ela é indiferente.

 

“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]

 

Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Os Pensadores, pg. 96)

 

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TRÍPLICE MISSÃO

 

A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.

 

As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.

 

“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107 – grifo meu).

 

A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:

 

“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)

 

Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)

 

A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, Os Pensadores, 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.

 

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DESEJO E ILUSÃO

 

Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:

 

“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)

 

Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.

 

Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).

 

Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse.  É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:

 

“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)

 

Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.

 

A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.

 

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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI

 

Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).

 

Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).

 

Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):

 

“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”

 

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ILUSÃO BENIGNA?

 

Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?

 

Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:

 

“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)

 

Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):

 

“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)

 

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MORALIDADE E IRRELIGIÃO

 

Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.

 

Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).

 

Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!

 

Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!

 

Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).

 

Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.

 

“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).

 

Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.

 

Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).

 

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ASFIXIANDO O PENSAMENTO

 

A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?

 

“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)

 

Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113).

 

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REFERÊNCIAS

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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.

 

FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.

 

FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.

 

KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.

 

LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.

Freud e a Religião ::
 
Foram três as grandes “feridas narcísicas” sofridas pela humanidade, segundo Sigmund Freud. A primeira, a perda de nossa ilusão de estarmos no centro do cosmos gerada pelas descobertas de Copérnico e o reconhecimento pleno do heliocentrismo; a segunda, a “degradante” descoberta darwiniana da evolução das espécies, que deu a nosso narcisismo a “má notícia” de que não somos criaturas saídas das mãos de um deus, mas meros descendentes dos primatas, macacos melhorados; e, em terceiro lugar, a própria psicanálise freudiana, que mostrou que “o ego não é rei em sua própria casa” e escancarou o quanto o comportamento humano é guiado mais por impulsos inconscientes e pulsões biológicas do que por princípios racionais.
 
Mas a ferida narcísica que Freud surgiu para infligir talvez seja mais profunda do que ele mesmo previu: sua teoria a respeito da religião e das raízes da necessidade psicológica da fé também representam ferimentos severos à auto-imagem de todos os Narcisos que queriam continuar a crer que são os “favoritos da Criação” e que havia um “plano divino” dedicado a construir a felicidade humana… Como diz Freud numa frase inesquecível, dum pessimismo à la Schopenhauer,  “somos tentados a pensar que não entrou no plano da ‘Criação’ a idéia de que o homem fosse feliz”…
 
A Natureza, para um ateu de lucidez tão implacável como era Freud, jamais foi vista através da névoa distorcedora do idealismo ou do antropomorfismo. A Natureza, para o Pai da Psicanálise, evidentemente não é criação de um Deus Onipotente, Bom e Sábio. Não é algo que esteja aí para nos “agradar”, nos deleitar, nos receber calidamente em seu seio. Nem está “do nosso lado”, pronta a atender nossos desejos e preces. Seria uma ilusão humanizá-la, sentimentalizá-la, “encantá-la” e supor nela intenções, desejos, desígnios e vontades. Para Freud, a Natureza, na verdade, é um imenso aglomerado de Forças e Energias que, em sua totalidade, escapa totalmente ao nosso controle. “Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente”, aponta ele, antes de enveredar por exemplos ilustrativos:
 
“os elementos, parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 96)
 
Jacques Lacan, em seu Discurso aos Católicos, sublinhou que o pensamento de Freud, como já começamos a suspeitar, não concebe uma Natureza que possua “desvelos humanistas” ou que seja “sensível” aos sofrimentos e aos prazeres humanos.  Ela é indiferente.
 
“Não, a reflexão de Freud não é humanista. Nada permite aplicar-lhe esse termo” (pg. 34), afirma Lacan. “A realidade física é totalmente inumana. (…) Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus…” (pg. 40) Lacan sugere mesmo que à Freud “a própria dor parece-lhe inútil. Para ele, o mal-estar da civilização resume-se nisto: tanto sofrimento para um resultado cujas estruturas terminais são antes agravantes…” (pg. 34) [LACAN, O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.]
 
Não importa o quanto a Civilização avance, pois, com seu séquito de novos conhecimentos científicos e novas tecnologias; a Natureza “inumana” está sempre presente como um poder superior e ameaçador, desencadeando tempestades, terremotos, tsunamis e chuvas de cometa capazes de, por vezes, reduzir à pó milênios de árduo trabalho humano ou mesmo extinguindo espécies inteiras de animais. Descobrir-se em meio a um mundo natural tão hostil certamente gera tormentos psíquicos e crises de valor, como Freud aponta: “A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade pede uma resposta.” (O Futuro de Uma Ilusão, Os Pensadores, pg. 96)
 
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TRÍPLICE MISSÃO
 
A religião teria sido inventada, pois, com uma tríplice missão: “exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.” A psicanálise, portanto, reduz à religião a um mero “cabedal de idéias”, “nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana” (O Futuro de Uma Ilusão, pg. 98). Testemunho mais de nossa fraqueza que de nossa força, mais de nossa fragilidade que de nossa indestrutibilidade, mais de nossa angústia que de nossa felicidade, a religião é, de fato, como Marx depois dirá, “o suspiro da criatura oprimida” – e, como Freud sugere, a tentativa delirante de suplantar essa opressão das forças naturais, da morte e da repressão cultural.
 
As idéias religiosas, pois, não descem do Céu para a Terra como um graça ou uma revelação, como um dom dos deuses para os pobres mortais, mas são germinadas no vaso fértil e imaginativo do crânio humano: é aí, na cachola atormentada do homo sapiens, que nascem e morrem todos os deuses.
 
“As idéias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados da experiência ou resultados finais de pensamentos: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 107 – grifo meu).
 
A psicanalista Julia Kristeva define a posição freudiana em relação à religião nos seguintes termos:
 
“É como uma ilusão que a religião aparece precisamente a Freud, ilusão gloriosa porém, já que ele a entendia no sentido do equívoco de Cristóvão Colombo ou dos alquimistas. Como estas experiências pré-científicas, que vão dar, no entanto, origem à geografia moderna e à química, a religião seria uma construção de pouca realidade do desejo de seus sujeitos. (…) Notando a dificuldade que têm os seres humanos de suportar o desmoronamento de seus fantasmas e o fracasso de seu desejo, sem substitui-los por novas ilusões das quais não percebem nem a pouca realidade nem a desrazão, Freud tenta precisar o benefício secundário que comporta precisamente esta ilusão.” (No Príncípio Era O Amor – Psicanálise E Fé, pgs. 21-22)
 
Kristeva, na esteira de Freud, destaca o fato que as crenças servem justamente para “gratificar o indivíduo em seu cerne narcísico” (pg. 36), “reparar nossos transtornos de Narcisos feridos” (pg. 37) e nos ofertar a “certeza da remuneração” (pg. 42). Além disso, um certo anseio amoroso está na base do impulso para a fé: o desejo de ser amado por Deus é um dos motores que lança o crente à sua crença. “Deus vos amou primeiro”, “Deus é amor”, são os postulados que asseguram ao crente a permanência da generosidade e da graça. É-lhe feito o dom de um amor de que não terá sido merecedor de antemão, mesmo que, certamente, a questão venha a se colocar ulteriormente, com uma exigência de ascese e de aperfeiçoamento”. (op cit, pg. 37)
 
A religião, pois, é entendida no universo freudiano como uma invenção humana destinada a remediar um desamparo existencial que perdura, após a infância, na vida madura. A religião procura “mitigar nosso temor dos perigos da vida” com a imaginação do suposto “governo benevolente de uma Providência divina; e procura ainda ser uma “resposta aos enigmas que tentam a curiosidade do homem” (resposta obviamente fictícia). Enfim, representa um “alívio enorme para a psique humana” (O Futuro de Uma Ilusão, Os Pensadores, 107) e uma das mais tenazes ilusões que manteve a humanidade cativa através dos milênios.
 
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DESEJO E ILUSÃO
 
Em Moisés e O Monoteísmo, Freud já dizia:
 
“Não foi possível demonstrar (…) que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo.” (pg. 153 – edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.)
 
Os crentes, pois, iludem-se acreditando no Paraíso, na alma imortal e no Bom Governo de um Papai dos Céus Benevolente pois estão completamente cegados pelo desejo. Pois o procedimento do religioso consiste em, ao invés de fazer uma admissão sincera de um desejo (“seria muito bom se Deus existisse, gostaria muito que ninguém morresse…”), saltar para uma abusiva anunciação sobre uma suposta realidade (“existe um Deus, ninguém morre, iremos para o Paraíso se fizermos o Bem…”). O crente faz do que desejaríamos que fosse real a afirmação de que é real – ou, para usar uma expressão de Sponville, o crente “toma seus desejos pela realidade”.
 
Em certos casos, a cegueira é tamanha que atinge o nível de um delírio – como Richard Dawkins quis sublinhar quando entitulou seu livro. Freud também considera que as ilusões extremadas saltam para este outro nível de alienação da realidade: “algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que poderíamos compará-las à delírios” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 108).
 
Tudo o que a religião nos conta é uma cantilena de ninar, um conto-de-fadas kitsch, um conjunto de idéias feito sob medida para dar de mamar aos desejos humanos mais profundos e infantis: o desejo de proteção, de amparo, de sentido, de êxtase, de paz, de imortalidade etc. A religião nos diz justamente o que mais queremos ouvir, e por isso é de se suspeitar que a tenhamos inventado interesseiramente, com o único objetivo de nos convercermos, através de ficções e delírios, de que a vida é como desejaríamos que fosse.  É o que Freud aponta no irônico trecho abaixo, onde narra as consolações que nos tentam inculcar os monoteísmos ocidentais:
 
“Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que (…) ordena tudo para o melhor. (…) Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado orgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. (…) Ao final, todo o bem é recompensado, e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer…” (O Futuro de Uma Ilusão, p. 98)
 
Não se nega que as religiões possam ser, em certas sociedades, “prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes” (99). Mas Freud coloca a questão de saber se religião é de fato bem sucedida em dissipar, como pretende, os “terrores, sofrimentos e asperezas da vida” – algo que não só não está provado, como é questionável, duvidoso e em muitos casos absolutamente implausível. Ainda assim, Freud não se engana: “As pessoas sentem que a vida não seria tolerável” sem a religião (99) – e é isso que explica sua força.
 
A religião, este cabedal de idéias que é transmitido culturalmente, inculcada na nova geração pela educação, pelo sermão e pela catequisação, não tem nada de “natural” ou de “fruto da graça ou da revelação”, é claro. É “a civilização que fornece ao indivíduo essas idéias”; “são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria e outras coisas semelhantes”. A religião, sublinha Freud, não é verdade eterna, mas invenção humana, histórica, mutante, na estrada da civilização.
 
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O COMPLEXO PATERNO E A CRENÇA EM DEUS-PAI
 
Além disso, a idéia de Deus tem, para a psicanálise freudiana, um protótipo infantil: a imagem do Pai. O paralelo entre o desamparo infantil frente ao Pai e o desamparo do homem crescido frente à Natureza (hostil) é a base do raciocínio de Freud: “Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razão para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.” (97) Na vida adulta, re-experimentamos o desamparo e fragilidade da primeira infância frente à colossal e esmagadora maquinaria dos cosmos, de modo que esperamos de um Deus-Pai proteção e consolo. Ao mesmo tempo, “transformamos as forças da natureza” “lhes concedendo o caráter de um pai”, ou seja, “transformando-as em deuses” (97).
 
Isso porque, no fundo, uma certa dose de desamparo é incurável e inelutável. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai” (102).
 
Em suma, como ele aponta em Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci (Paris, Gallimard, 1987, p. 156):
 
“A psicanálise nos fez conhecer a relação íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus, nos mostrou que o Deus pessoal, psicologicamente, não passa de um pai levado às nuvens, e nos apresenta cotidianamente o espetáculo de jovens que perdem a fé a partir do momento em que sobre eles desaba a autoridade do pai. É portanto no complexo parental que reconhecemos a raiz da necessidade religiosa.”
 
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ILUSÃO BENIGNA?
 
Em “O Futuro De Uma Ilusão” é também posto em xeque um dos argumentos que julga-se dos mais fortes na defesa da religião: já que as grandes questões metafísicas são insolúveis para a razão humana, e já que a crença religiosa oferece tamanhas consolações e “cura” o homem de tantas angústias, trazendo tanto “alívio” psíquico, por que não aceitá-la e acolhê-la como uma espécie de ilusão benigna, de cegueira que faz bem?
 
Freud, é claro, não se deixa convencer por uma raciocínio desses, que denigre sem dó como “desculpa esfarrapada”: a religião de modo algum pode ser vista como algo que traz saúde psíquica! “Os crentes devotos são em alto grau salvaguardados de certas enfermidades neuróticas”, Freud o admite, mas é porque “sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (118)! Poucas vezes ele foi mais cáustico, mais irônico e mais iconoclástico do que aqui: possuir uma religião é possuir uma neurose coletiva, uma cegueira compartilhada por muitos, um delírio da imaginação profundamente alienante, e nada de benigno pode sair daí:
 
“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo” (pg. 109). Além do mais, “as verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha.” (118)
 
Freud, sem dúvida, espera que a humanidade seja capaz de um heroísmo de lucidez que ele próprio testemunhou com seu pensamento e que tanto nos empolga e ilumina. E nos conclama a uma atitude de desdém e de abandono em relação aos “contos de fada da religião” (106):
 
“Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (109)
 
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MORALIDADE E IRRELIGIÃO
 
Também a espinhosa questão moral Freud enfrenta de frente. Há por parte dos religiosos um intenso temor, quase um pavor, de que um caos social e ético se instalaria caso caísse o império da religião. Freud se imagina um opositor que lhe confronta com este argumento: “Caso se ensine às pessoas que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, os homens se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização” (110). Ou seja: se as pessoas não tiverem fé, acharão que “tudo é permitido”, e nunca mais agirão de modo ético e responsável, de modo que, “no interesse da preservação de todos nós”, ainda que essas idéias sejam reconhecidas pelas lúcidos como ilusões e delírios, a religião deveria ser mantida, ainda que a título de “cimento social” e impulso para o agir moral.
 
Freud obviamente discorda. “A civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos” (111), diz ele, como um profeta ateu que garante que viveríamos melhor abandonando de vez a quimera de Deus. A religião já “dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar”, ou seja, o planeta Terra já foi por séculos demais o laboratório à céu aberto onde os padres e papas usaram os humanos como cobaias para suas ideologias religiosas. “Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar” (113).
 
Portanto, é francamente falsa ou altamente implausível a tese de que a religião faria os homens mais felizes e mais bondosos – por que não, como a História nos dá tamanhas provas, não os tornaria mais culpados, atormentados, angustiados, sectários, intolerantes e sanguinários? “É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram”. Sem falar que, como comenta Freud com ironia, “o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina”. Não se esqueçam, irmãos, que estas noções de “pecado”, “culpa” e “inferno” são criações de crentes e não de ateus!
 
Apesar de não conceber nenhum perigo de “queda moral” na passagem da fé para o ateísmo nas “pessoas instruídas”, Freud chega a dar um pouco de razão àqueles que temem o caos social que se seguiria à derrocada da religião, especialmente se quem perdesse a fé fosse “a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização” (114). Os proprietários, os dominadores, os poderosos, têm razão de tremerem pelo seu tão querido status quo se as massas despertarem de seu sono teológico e quebrarem as correntes!
 
Mas será que só um estado policial e repressor seria capaz de conter, pela força, as massas irreligiosas? É uma hipótese que Freud considera: “Se a única razão pela qual não se deve matar o próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu Castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena” (114). No caso desta proibição – de matar o próximo – nós “revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus” (116).
 
Para Freud, as proibições culturais não precisam ficar nesta dependência em relação à religião.
 
“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria” (116).
 
Diríamos, por exemplo, que não se deve matar o próximo, não porque Deus assim o proibiu, mas porque se isto se tornasse “moda” os homens acabariam se exterminando mutuamente. Um motivo racional no lugar de um motivo religioso.
 
Freud, como bom racionalista, afirma a “impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas”, o que ele mesmo reconhece ser uma idéia que nada tem de novo: “Isso já foi sentido em todas as épocas e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito” (105 – grifo meu).
 
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ASFIXIANDO O PENSAMENTO
 
A obrigação de crer, sustentada por séculos através das ameaças de fogueira e excomunhão, sufocou e asfixiou o vôo do pensamento e as vitórias do saber. Quem há de contar os infinitos prejuízos e danos causados à progressão da sabedoria humana por esta cruel engrenagem de estraçalhar intelectos brilhantes que foi a religião ortodoxa e fanática, que reprimia a dúvida e a investigação e fazia apologia do dogmatismo e da fé cega e sem provas? E quem há de calcular o quanto se deforma e se impede o desenvolvimento intelectual de uma criança através de uma pedagogia alicerçada na religião?
 
“Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (F.I, p. 121)
 
Freud, pois, manifesta-se claramente favorável a um pedagogia irreligiosa e conclama os homens a assumirem sem covardia a lucidez implacável que ele, Freud, tão bem exercitou e exemplificou. Quanto mais cultos, inteligentes e lúcidos nos tornamos, quanto mais cresce em nós a capacidade de pensar de modo preciso e coerente, mais nos afastamos das quimeras delirantes da religião, sugere: “Quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa” (113).
 
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REFERÊNCIAS
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FREUD, S. O Futuro de Uma Ilusão. In: Os Pensadores. Ed. Abril Cultural.
 
FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas, volume 23 [1937-1939], trad. Jayme Salomão.
 
FREUD, S. Un souvenir d’enfance de Léonard de Vinci. Paris, Gallimard, 1987, p. 156.
 
KRISTEVA, Julia. No Princípio Era o Amor – Psicanálise e Fé. Ed. Brasiliense, 1987.
 
LACAN, Jacques. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos. RJ: Jorge Zahar, 2005.