Domar a sombra

02/02/2018 16:13

cuidardoser |

 
A minha sombra é minha amiga ou minha inimiga? Tudo depende da forma como a considero, como me relaciono com ela. Quando a encontramos pela primeira vez, surge como uma inimiga. O desafio é transformá-la em nossa amiga.
 
A sombra e a auto-estima
 
Carl Jung lembra que o psiquismo humano é um espaço de lutas íntimas: É sabido que os dramas mais emocionantes e mais estranhos não são os que se passam no teatro, mas sim no coração de todos os homens e mulheres. Estes vivem sem chamar a atenção e não deixam transparecer de forma alguma os conflitos tumultuosos que os habitam, a não ser que se tornem vítimas de uma depressão cujas causas eles próprios ignoram.(1)
 
É fundamental que reintegremos a nossa sombra. Quem recusar este trabalho sobre si mesmo arrisca-se a ter desequilíbrios psicológicos sérios. Terá tendência para se sentir stressado e deprimido, viverá atormentado por um sentimento vago de angústia, de insatisfação consigo próprio e de culpabilidade. Ficará sujeito a toda a espécie de obsessões e será susceptível de se deixar arrastar pelos seus impulsos: ciúme, cólera mal gerida, ressentimentos, desvios sexuais, gula, etc.
 
Entre as dependências humanas mais comuns encontramos o alcoolismo e a toxicodependência, que tantos danos causam nas sociedades modernas. Sam Naifeh, num excelente artigo sobre as causas da dependência, afirma: A dependência é um problema da sombra.(2) De facto, a atracção compulsiva pelo álcool e pelas drogas provém da busca incoerente do lado sombrio do nosso ser. Acusamos as substâncias tóxicas de serem a causa de desgraças humanas, mas, na verdade, elas são apenas a sua causa indirecta, pois permitem ao seu utilizador ultrapassar os limites da consciência. Assim, por uns momentos, o utilizador pode identificar-se com o lado sombrio de si mesmo, lado esse que o atrai constantemente. A parte sóbria do alcoólico sentir-se-á permanentemente insatisfeita enquanto não encontrar a parte alcoólica escondida na sombra.
 
Domar a Sombra para manter relações sociais sãs
 
Perturbações causadas pela projecção da sombra
 
Se a sombra não for reconhecida e acolhida, não só criará obsessões como forçará a sua entrada no consciente sob a forma de projecções sobre as outras pessoas.
 
Quais são os efeitos da projecção da sombra sobre os que nos rodeiam? Sob a influência das projecções da sua sombra, uma pessoa deturpa a sua percepção do real. Atribui aos outros os traços ou qualidades que não quer ver em si. Terá então tendência para idealizar os portadores das suas projecções, para desprezá-los ou para temê-los. Em resumo, o “projector” chegará a ter medo das projecções da sua sombra. Vê-la-á em pessoas que, aos seus olhos, serão fascinantes ou ameaçadoras, como se o seu olhar fosse um espelho deformante.
 
Quando tais fenómenos ocorrem nas relações sociais, há que esperar conflitos. Por uma curiosa lei de reflexão da luz, as projecções reflectem-se no próprio projector e apoderam-se dele. A pessoa cai sob o fascínio ou a repulsa da sua própria sombra.
 
À semelhança de um pugilista que treina tentando acertar na sua sombra, estará condenada a executar um contínuo e esgotante exercício de shadow boxing (3).
 
Resolução dos conflitos criados pela projecção da sombra
 
Se alguém projecta os seus próprios defeitos ou fraquezas sobre outra pessoa, dificilmente conseguirá tolerar ou amar essa outra pessoa, quer ela seja o patrão, o vizinho, o cônjuge, ou o filho. Este semelhante há-de enervá-lo e há-de dominá-lo. Referimo-nos aqui à maior parte dos conflitos interpessoais e das disputas profissionais.
 
Para Carl Jung, a tomada de consciência das nossas projecções sobre os outros e do seu reflexo em nós produz não só uma melhoria nas relações interpessoais, mas também um efeito benéfico em toda a sociedade. Segundo Jung, todo o homem que se esforça por estar de acordo com a sua sombra, a fim de reintegrar as suas projecções, faz algo que beneficiará o mundo: Por mais ínfimo que esse trabalho nos pareça, através dele conseguimos encontrar soluções para os enormes e inultrapassáveis problemas do nosso tempo (4).
 
A moral da lei e a criação de “bodes expiatórios”
 
Erich Neumann considera que uma ética preocupada apenas em determinar o que é bem e o que é mal é deficiente, porque não ajuda a pessoa a descobrir em si as raízes do mal e a munir-se de meios para as suprimir. Em oposição a esta ética, a que chama A Velha Ética, Neumann propõe uma outra – A Nova Ética – na qual o essencial da formação da consciência moral consiste em realizar a integração da sua sombra.
 
Neumann vê neste trabalho psico-espiritual um elemento determinante para a formação de uma verdadeira consciência moral. Longe de projectar nos outros as tendências desordenadas da sua sombra, o novo ser moral reconhece-as em si, assume a responsabilidade por elas e depois integra-as numa vida moral coerente.
 
A Velha Ética leva eventualmente à criação de uma mentalidade de “bode expiatório”, mentalidade que se manifesta, em primeiro lugar, no plano da vida pessoal, como fonte de antipatias e de conflitos de natureza relacional. Por vezes, essa mentalidade corre o risco de tomar proporções gigantescas quando transpostas a uma escala nacional. A este nível, a sombra tenderá a ver o diabo nas nações vizinhas e depois assume a missão de as destruir. Não terá sido esta a origem de numerosos conflitos armados ao longo da história? Pela mesma lógica, os estrangeiros, as minorias e as pessoas “diferentes” serão o alvo preferencial de projecções e transformar-se-ão em “bodes expiatórios”.
 
Para Neumann, só uma Nova Ética irá possibilitar às nações reconhecerem as suas próprias tendências perversas em vez de as projectarem. Será preciso recordar que as projecções da sombra colectiva não são inofensivas mas podem gerar perseguições e hecatombes, como o extermínio dos judeus pelos nazis?
 
(1) C.G. Jung, Psychology and Religion: West and East. (Collected Works,7), Bollingen Series, Princeton University Press, 1938, p. 528.
(2) S. Naifeh, “Archetypal Foundations of Addiction and Recovery”, in Journal of Analytical Psychology, 40, 1995, p.148.
(3) Exercício de boxe simulado com a sombra.
(4) C.G. Jung, op. cit., p.140.
Continuação: A concepção junguiana da sombra
Domar a sombra
 
A minha sombra é minha amiga ou minha inimiga? Tudo depende da forma como a considero, como me relaciono com ela. Quando a encontramos pela primeira vez, surge como uma inimiga. O desafio é transformá-la em nossa amiga.
 
A sombra e a auto-estima
 
Carl Jung lembra que o psiquismo humano é um espaço de lutas íntimas: É sabido que os dramas mais emocionantes e mais estranhos não são os que se passam no teatro, mas sim no coração de todos os homens e mulheres. Estes vivem sem chamar a atenção e não deixam transparecer de forma alguma os conflitos tumultuosos que os habitam, a não ser que se tornem vítimas de uma depressão cujas causas eles próprios ignoram.(1)
 
É fundamental que reintegremos a nossa sombra. Quem recusar este trabalho sobre si mesmo arrisca-se a ter desequilíbrios psicológicos sérios. Terá tendência para se sentir stressado e deprimido, viverá atormentado por um sentimento vago de angústia, de insatisfação consigo próprio e de culpabilidade. Ficará sujeito a toda a espécie de obsessões e será susceptível de se deixar arrastar pelos seus impulsos: ciúme, cólera mal gerida, ressentimentos, desvios sexuais, gula, etc.
 
Entre as dependências humanas mais comuns encontramos o alcoolismo e a toxicodependência, que tantos danos causam nas sociedades modernas. Sam Naifeh, num excelente artigo sobre as causas da dependência, afirma: A dependência é um problema da sombra.(2) De facto, a atracção compulsiva pelo álcool e pelas drogas provém da busca incoerente do lado sombrio do nosso ser. Acusamos as substâncias tóxicas de serem a causa de desgraças humanas, mas, na verdade, elas são apenas a sua causa indirecta, pois permitem ao seu utilizador ultrapassar os limites da consciência. Assim, por uns momentos, o utilizador pode identificar-se com o lado sombrio de si mesmo, lado esse que o atrai constantemente. A parte sóbria do alcoólico sentir-se-á permanentemente insatisfeita enquanto não encontrar a parte alcoólica escondida na sombra.
 
Domar a Sombra para manter relações sociais sãs
 
Perturbações causadas pela projecção da sombra
 
Se a sombra não for reconhecida e acolhida, não só criará obsessões como forçará a sua entrada no consciente sob a forma de projecções sobre as outras pessoas.
 
Quais são os efeitos da projecção da sombra sobre os que nos rodeiam? Sob a influência das projecções da sua sombra, uma pessoa deturpa a sua percepção do real. Atribui aos outros os traços ou qualidades que não quer ver em si. Terá então tendência para idealizar os portadores das suas projecções, para desprezá-los ou para temê-los. Em resumo, o “projector” chegará a ter medo das projecções da sua sombra. Vê-la-á em pessoas que, aos seus olhos, serão fascinantes ou ameaçadoras, como se o seu olhar fosse um espelho deformante.
 
Quando tais fenómenos ocorrem nas relações sociais, há que esperar conflitos. Por uma curiosa lei de reflexão da luz, as projecções reflectem-se no próprio projector e apoderam-se dele. A pessoa cai sob o fascínio ou a repulsa da sua própria sombra.
 
À semelhança de um pugilista que treina tentando acertar na sua sombra, estará condenada a executar um contínuo e esgotante exercício de shadow boxing (3).
 
Resolução dos conflitos criados pela projecção da sombra
 
Se alguém projecta os seus próprios defeitos ou fraquezas sobre outra pessoa, dificilmente conseguirá tolerar ou amar essa outra pessoa, quer ela seja o patrão, o vizinho, o cônjuge, ou o filho. Este semelhante há-de enervá-lo e há-de dominá-lo. Referimo-nos aqui à maior parte dos conflitos interpessoais e das disputas profissionais.
 
Para Carl Jung, a tomada de consciência das nossas projecções sobre os outros e do seu reflexo em nós produz não só uma melhoria nas relações interpessoais, mas também um efeito benéfico em toda a sociedade. Segundo Jung, todo o homem que se esforça por estar de acordo com a sua sombra, a fim de reintegrar as suas projecções, faz algo que beneficiará o mundo: Por mais ínfimo que esse trabalho nos pareça, através dele conseguimos encontrar soluções para os enormes e inultrapassáveis problemas do nosso tempo (4).
 
A moral da lei e a criação de “bodes expiatórios”
 
Erich Neumann considera que uma ética preocupada apenas em determinar o que é bem e o que é mal é deficiente, porque não ajuda a pessoa a descobrir em si as raízes do mal e a munir-se de meios para as suprimir. Em oposição a esta ética, a que chama A Velha Ética, Neumann propõe uma outra – A Nova Ética – na qual o essencial da formação da consciência moral consiste em realizar a integração da sua sombra.
 
Neumann vê neste trabalho psico-espiritual um elemento determinante para a formação de uma verdadeira consciência moral. Longe de projectar nos outros as tendências desordenadas da sua sombra, o novo ser moral reconhece-as em si, assume a responsabilidade por elas e depois integra-as numa vida moral coerente.
 
A Velha Ética leva eventualmente à criação de uma mentalidade de “bode expiatório”, mentalidade que se manifesta, em primeiro lugar, no plano da vida pessoal, como fonte de antipatias e de conflitos de natureza relacional. Por vezes, essa mentalidade corre o risco de tomar proporções gigantescas quando transpostas a uma escala nacional. A este nível, a sombra tenderá a ver o diabo nas nações vizinhas e depois assume a missão de as destruir. Não terá sido esta a origem de numerosos conflitos armados ao longo da história? Pela mesma lógica, os estrangeiros, as minorias e as pessoas “diferentes” serão o alvo preferencial de projecções e transformar-se-ão em “bodes expiatórios”.
 
Para Neumann, só uma Nova Ética irá possibilitar às nações reconhecerem as suas próprias tendências perversas em vez de as projectarem. Será preciso recordar que as projecções da sombra colectiva não são inofensivas mas podem gerar perseguições e hecatombes, como o extermínio dos judeus pelos nazis?
 
(1) C.G. Jung, Psychology and Religion: West and East. (Collected Works,7), Bollingen Series, Princeton University Press, 1938, p. 528.
(2) S. Naifeh, “Archetypal Foundations of Addiction and Recovery”, in Journal of Analytical Psychology, 40, 1995, p.148.
(3) Exercício de boxe simulado com a sombra.
(4) C.G. Jung, op. cit., p.140.
Continuação: A concepção junguiana da sombra