ASSÉDIO MORAL NO CASAMENTO- AGRESSÃO PELA PALAVRA!!
No começo, é um olhar de censura, uma alfinetada sem elevar a voz. Mas o desejo de humilhar aumenta gradativamente... até que o parceiro consegue destruir a auto-estima da mulher, que se deprime e se culpa. Veja por que a psiquiatra francesa MARIE-FRANCE HIRIGOYEN luta para que o assédio moral seja considerado crime e acompanhe o depoimento de uma leitora
Ruth de Aquino, de Paris
Antes de levar oito pontos no nariz com um soco do marido numa discussão banal - como aconteceu em fevereiro com Ingrid Saldanha, mulher do ator Kadu Moliterno -, toda mulher deveria ler um ou dois livros da psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen. As histórias que Marie-France conta sobre o assédio moral e a violência perversa do cotidiano entre casais são um alerta poderoso. Entre as quatro paredes de um casamento, é nas palavras, no tom, no olhar, na ironia, na indiferença e na humilhação que se descobrem os primeiros sinais da crueldade psicológica. As cicatrizes, às vezes, são mais profundas do que as de uma agressão física. O jogo do poder se instala insidiosamente nas refeições, nos passeios de fim de semana, na educação dos filhos, no aproveitamento maldoso das confidências...
Em conversa com CLAUDIA no seu consultório em Paris, na Rive Gauche, perto da Sorbonne, a autora dos livros MAL-ESTAR NO TRABALHO - REDEFININDO O ASSÉDIO MORAL e A VIOLÊNCIA NO CASAL (ED. BERTRAND BRASIL) falou sobre esse vírus invisível que corrói aos poucos as relações amorosas. A intimidade excessiva cria a violência. O assédio moral no casamento, se não é combatido a tempo, resulta freqüentemente em agressões. Mesmo após tantas décadas de feminismo, na França três mulheres são mortas a cada 15 dias pelo companheiro ou marido. Um dado impressionante do Ministério do Interior francês. Marie-France, com base nas histórias de suas pacientes, aconselha: "Antes do primeiro tapa, reaja à violência verbal e psicológica". Corte o mal pela raiz. Se as pancadas em sua auto-estima não deixam hematomas dignos de capa de revista, não se iluda achando que são menos graves. Assédio moral também destrói e mata. Deixa seqüelas, aleija a alma.
"O objetivo de meu livro é ajudar as mulheres a reconhecer os primeiros sinais. A violência é um modo de relação, um comportamento repetido no dia-a-dia e não apenas o clímax da agressão", diz Marie-France. A psiquiatra lamenta que as jovens continuem buscando dicas de como seduzir, como satisfazer o homem, como ser o que eles esperam de você". Esse tipo de obsessão provoca um condicionamento negativo. No casamento, não se pode ter medo de divergir do companheiro. Marie-France é a favor das "cenas de faxina doméstica", as discussões que servem vista. "Prefiro os conflitos, mesmo barulhentos, porque há mais respeito do que quando um tenta se impor sobre o outro. A violência silenciosa, o olhar de censura, a alfinetada sem elevar o tom podem destruir a identidade." O resultado, muitas vezes, é que a mulher se desvaloriza, se deprime e se culpa. Sua alma se torna escrava daquele relacionamento, como numa lavagem cerebral.
Para a autora, os casais estão cada vez mais distantes, porque cada um procura no outro algo que não está disponível. "O homem precisa mais de uma certa proximidade. Busca mais uma fusão, receia o abandono e vive uma crise de impotência no trabalho, na sociedade e em casa. Ele não consegue mais ser o provedor. Por outro lado, a mulher está cansada de ser a mãe, a enfermeira, a protetora. Já que trabalha fora e é autônoma, quer também alguém que se ocupe dela, como ela se ocupa dele." Marie-France acredita que todos estão vivendo uma solidão maior. Entre as grandes armadilhas, está o "homem-ventosa", que usa um processo de sedução para "se colar, grudar, absorver, vampirizar".
Veja, agora, algumas frases que são ditas no casamento e que, se repetidas com freqüência, denunciam o desejo de dominar, humilhar, denegrir, intimidar. São expressões que ilustram casos reais contados pelas pacientes de Marie-France. É o começo da violência sutil, que aumenta progressivamente... até que a vítima acaba sem saber o que é normal ou não, o que dizer, o que pensar. São mensagens de sedução no início, seguidas de ameaças veladas ou de clara hostilidade e fria indiferença.
"Eu digo isso porque te amo."
"Não adianta eu te explicar, você não vai entender mesmo.
"Seu comportamento não me surpreende."
"Com a família que você tem..."
"Você acha que sou um imbecil?
"Você não vai consegui
"Prefiro que você não faça isso sozinha
"Não tenho nada a ver com isso, não é problema meu
"Sei melhor do que você o que é bom para você
"Pára de falar besteira
"Afinal, você tem medo do quê
"Você vive reclamando."
"Por que você não consegue fazer nada direito?"
"Todo mundo sabe que você é louca, eu deveria internar você."
"Se você passar daquela porta..."
Antes do primeiro tapa, observe esses sinais de abuso. Se os episódios se repetirem, reaja, porque senão você vai acabar se achando uma nulidade e se isolando do resto do mundo. É por isso que Marie-France Hirigoyen luta, com seus livros e palestras, para transformar o assédio moral em crime.
O HOMEM-VENTOSA
É tão violento sentir a mente invadida e devastada quanto sofrer um estupro ou levar uma surra. Passei anos com a sensação de que me fora roubado o sopro da vida. Olhando bem para trás, para 1983, acho que o primeiro sinal aconteceu quando o conheci, quando a gente ainda nem namorava. Ele freqüentou minha casa por mais de ano contando histórias tristes a seu respeito. Oferecia generosa amizade e silenciosa invasão. Eu estava fragilizada por ser mãe pela primeira vez, cuidando de uma filha pequena (2 anos), com um marido que amava, mas que acabou não resistindo a sérios problemas de saúde.
Quase três anos mais moço que eu, ele tratava minha filha com ternura de fazer gosto e a mim como uma rainha. Sugeria passeios, topava ficar em minha casa só no lero. Estava sem emprego, querendo estudar psicologia. Aos 28 anos, passava por uma baita crise existencial. Havia se casado aos 20, se separado aos 27. Eu tinha 30 anos, com carinho sobrando e uma carreira bacana. Vivemos quase 20 anos uma história de amor, tivemos um filho e ele se tornou o "pai" da minha filha.
A primeira ficha caiu quando fazíamos análise de casal e ele me pediu para não tocar em determinados assuntos na terapia... e eu, pasme, fiquei quieta. Afinal, lá estava ele mais uma vez sem emprego, em crise, brocha. Tinha tanto medo de perdê-lo que desconversei, preocupada com a dor dele... E a minha dor? Ah, essa eu podia relevar. Estranhei quando, ao perder o último bom emprego, meu marido insistiu que não se tocasse no assunto em casa e não se mudasse o padrão de vida da família. Logo tudo iria se ajeitar. Na mesma ocasião, pediu que, durante as férias de julho, viajasse com nosso filho para o sítio na serra. Relutei, não era hora para ele ficar sozinho tão deprimido. Sugeri enviar a criança para uma colônia de férias, mas ele respondeu: "Se você me ama, vá cuidar do nosso filho que eu saio dessa e, quando vocês voltarem, já estarei empregado". Quando regressamos, 15 dias depois, ele estava realmente bem: havia alugado um apartamento a algumas quadras de nossa casa. Armara a mudança sem nenhuma conversa comigo. Dois anos depois, soube que contara, bêbado, a nosso caseiro, que iria embora só para me dar um pequeno susto, mas que voltaria. De fato, passados três meses, reatamos e convivemos mais um ano cada um na sua casa. Eu culpava a menopausa, que se avizinhava, pela situação. Aos poucos, saquei que o que ele queria mesmo era transar com todas as gatinhas que aparecessem.
Certa vez, tirou meu filho de casa. Às escondidas, comprou uma passagem, organizou a viagem todinha e, finalmente, comunicou que mandaria o garoto fazer intercâmbio fora do país. Inventava coisas insanas em relação ao menino, como convidá-lo para beber e jogar sinuca às vésperas de provas. Em outra ocasião, convenceu- o a consultar um analista sem me dizer nada. Meu filho não agüentou quatro sessões e abriu o jogo comigo. Pela primeira vez, realmente tive raiva do cara. Me dei conta da capacidade de meu marido de se livrar das pessoas quando não lhe convinham mais - a começar pela ex-mulher, que ele dizia ser louca, porque tentara suicídio após o rompimento. Ele também sugeria: "Poderíamos viver só nós, não preciso de mais ninguém, você tem mania de ter amigos demais". Nenhum conhecido, parente meu ou dele era suficientemente bom para a gente estar junto. Tentou me fazer desistir de comemorar meu aniversário. Logo eu que sou tão festeira.
Depois da separação, mesmo tendo tido um consultório cheio por mais de 25 anos, me senti incapaz de atender qualquer cliente por quase três anos. Em quatro meses, perdi 8 quilos. Senti o desespero do isolamento. Eu havia sido a luz da vida daquele homem e, da noite para o dia, ele me ignorava e dizia aos amigos que me evitava para que eu sofresse menos ou, se contradizendo, que eu devia estar feliz porque, afinal, não gostava mais dele e ele me fizera o favor de sumir da minha existência. Não quis advogado na separação. Para mim, só valeria a pena entrar na Justiça se desse para provar o assédio moral, a lenta e gradual destruição da auto-estima. Mas isso ainda é um tabu no Brasil. Ninguém fala, ninguém vê, ninguém reconhece.
*O NOME FOI TROCADO PARA PRESERVAR A IDENTIDADE DA LEITORA