A sombra coletiva

02/02/2018 16:25

cuidardoser |

Confrontamo-nos com o lado escuro da natureza humana todas as vezes que abrimos um jornal ou ouvimos um noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na espantosa mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida para toda a nossa moderna aldeia global electrónica. O mundo tornou-se palco da sombra colectiva.

sombra coletiva – a maldade humana – depara-se-nos praticamente em toda a parte: salta dos títulos dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e dorme sem abrigo no vão das portas;corrompe políticos ávidos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armas a líderes enlouquecidos e entrega os lucros obtidos a rebeldes reacionários; despeja, por canos ocultos, a poluição nos nossos rios e oceanos e envenena, com pesticidas invisíveis, os nossos alimentos.

Enquanto a maior parte dos indivíduos e dos grupos vive de forma socialmente aceitável, outros parecem querer viver uma forma de vida que a sociedade repudia. Quando eles se tornam objeto de projeções negativas por parte dos grupos, a sombra colectiva exprime-se na busca de bodes expiatórios, no racismo ou na criação de inimigos. Para os americanos anticomunistas, o império do mal era a U.R.S.S. Para os muçulmanos, os E.U.A. são o grande Satã. Para os nazis, os judeus eram vermes bolcheviques. Para os ascéticos monges cristãos, as bruxas têm um pacto com o Diabo. Para os defensores sul-africanos do apartheid, ou para os membros americanos do Ku Klux Klan, os negros são sub-humanos, indignos dos direitos e dos privilégios dos brancos.

O poder hipnótico e a natureza contagiante destas emoções fortes são evidentes na disseminação da perseguição racial universal, dos conflitos religiosos e das tácticas de busca de bodes expiatórios. Desta forma, seres humanos tendem a desumanizar outros como forma de assegurar que são os únicos detentores da verdade – e que matar o inimigo não significa que estejam a matar seres humanos como eles próprios.

Ao longo da história, a sombra foi surgindo através da imaginação humana, sob a forma de monstros, dragões, de figuras como Frankenstein, de  extraterrestres ou homens tão vis que não poderíamos identificar-nos com eles. Mas revelar o lado oculto da natureza humana é um dos propósitos principais da arte e da literatura.

Ao utilizar a arte e os media, incluindo para a propaganda política, podemos tentar ganhar poder sobre algo que vemos como demoníaco, para assim quebrarmos o seu feitiço. Este fato pode ajudar-nos a explicar como nos deixamos fascinar com as histórias violentas que nos são contadas pelos media, sobre fanáticos religiosos ou agitadores que incitam à guerra. Repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do nosso mundo, transformamos, nas nossas mentes, determinadas pessoas ou grupos em detentores do mal e inimigos da civilização.

O lado oculto não é uma aparição evolutiva recente, nem um resultado da civilização e da educação. Ele encontra as suas raízes numa sombra biológica que se encontra nas nossas próprias células. Os nossos antepassados animais, apesar de tudo, sobreviveram lutando encarniçadamente. O monstro em cada um de nós está bem vivo – só que aprisionado a maior parte das vezes.

Conhece-te a ti mesmo

No templo de Apolo, em Delfos, que foi construído na encosta do monte Parnaso pelos Gregos e que hoje já se encontra destruído, os sacerdotes gravaram na pedra duas famosas inscrições, dois preceitos que possuem ainda grande significado para nós. O primeiro, Conhece-te a ti mesmo, tem ampla aplicação na nossa vida: conhece tudo sobre ti mesmo, aconselhava o sacerdote do deus da luz, ou seja, conhece especialmente o lado oculto de ti mesmo.

Nada em excesso

Vivemos numa época de excessos críticos: crime a mais, exploração a mais, poluição a mais, armas nucleares a mais. Estes são excessos que podemos reconhecer e repudiar, apesar de nos sentirmos impotentes para fazer o que quer que seja contra eles.

Mas existirá, de fato, algo que possamos fazer? Para muitas pessoas, as qualidades inaceitáveis do excesso vão diretamente para a sombra inconsciente, ou são expressas através de comportamentos sombrios. Em muitos casos, estes extremos assumem a forma de sintomas: sentimentos e acções intensamente negativos, sofrimentos neuróticos, doenças psicossomáticas, depressão e abuso de narcóticos.

O cenário pode ser descrito assim: quando sentimos um desejo excessivo, empurramo-lo para a sombra, e depois agimos sem a menor preocupação com os outros; quando sentimos uma fome excessiva, empurramo-la para a sombra, e depois comemos em demasia, vomitamos e prejudicamos, assim, o nosso corpo; quando sentimos um forte anseio pelo lado mais elevado da vida, empurramo-lo para a sombra, e depois tentamos satisfazê-lo através de uma gratificação urgente ou de uma actividade hedonística como o consumo de droga e de álcool. A lista continua.
Na nossa sociedade vemos o crescimento dos excessos da sombra em toda a parte:

  • numa incontrolável sede de conhecimento e de domínio da natureza (expressa na amoralidade das ciências e na parceria desajustada do mundo dos negócios e da tecnologia);

  • num local de trabalho tenso e desumano (expresso quer na apatia de uma força de trabalho alienada, quer no orgulho do sucesso);
  • na maximização do crescimento e progresso empresarial;
  • num hedonismo materialista (expresso no consumismo desenfreado, na publicidade exploradora, no desperdício e na poluição incontrolável);
  • num desejo de controlar (expresso na exploração e na manipulação dos outros, na violência doméstica e abuso infantil);
  • no nosso sempre presente medo da morte (expresso no culto do corpo, nas dietas, nas drogas e na busca da longevidade a qualquer preço).

Estes aspectos da sombra são onipresentes na nossa sociedade. Contudo, as soluções experimentadas para acabar com os nossos excessos coletivo poderão ser ainda mais perigosas do que o próprio problema. Consideremos, por exemplo, o fascismo e o autoritarismo, os horrores que surgiram nas tentativas reaccionárias para controlar a desordem social, a decadência e a permissividade generalizadas na Europa. Mais recentemente, o fervor do fundamentalismo religioso e político ressurgiu como resposta às ideias progressistas.

Jung foi brando quando afirmou: Todos nós ingenuamente nos esquecemos de que, por debaixo do nosso mundo racional, outro permanece enterrado. Não sei que mais terá a humanidade de sofrer antes de se atrever a admitir esta verdade.