A ferida da separação: o apego como direito fundamental

08/04/2019 22:03

A ferida da separação de uma criança em relação a seus pais é algo que não se esquece nunca. Ela é imensa e deixa uma série de sequelas que permanecem no tempo de forma quase irreparável. É isso que viveram muitas das crianças que foram separadas de uma forma abrupta (e violenta) dos seus pais na fronteira entre os Estados Unidos e o México.

Há imagens que deixam gravada a essência mais desumana da nossa raça. Em meados de junho do ano passado, os jornais de todo o mundo publicaram fotografias e vídeos do Vale do Rio Grande, no sul do Texas. Ali e ao longo da fronteira foi erguido um conjunto de edificações no qual dezenas de crianças choravam e perguntavam pelas suas famílias enquanto eram amontoadas em celas metálicas.

Reconhecer o impacto da ferida da separação prolongada entre pais e filhos nos obriga a estabelecer medidas para garantir que as famílias não se separem sob nenhuma condição ou circunstância.

Eram filhos de imigrantes que acabavam de entrar de forma ilegal no país. Eram crianças que acabavam de viver um momento bastante traumatizante: ser separadas de forma violenta dos seus progenitores. Sabe-se que o governo norte-americano separou mais de duas mil crianças dos seus pais e mães, seguindo a política da “tolerância zero” determinada por Donald Trump.

Embora seja verdade que o próprio presidente revogou esta política de separação devido à pressão social, profissionais especialistas em psicologia infantil afirmam que o dano já foi feito, e que as feridas que podem ter sido causadas por esse sofrimento serão, em muitos casos, irreparáveis.

 

Separação na fronteira

 

A ferida da separação, uma marca permanente

A imagem que ilustra o artigo é a que deu a volta ao mundo devido a sua expressividade, à angústia e ao desconcerto contidos em um rosto infantil. É uma menina hondurenha de dois anos que acaba de ser detida junto com a sua mãe na fronteira. Sabe-se que, neste caso, mãe e filha não foram separadas. No entanto, ela não é alheia a esse instante de angústia, de ameaça por parte da autoridade, e do medo exacerbado e profundo que, com certeza, vê na expressão da sua própria mãe.

Os psicólogos vêm estudando o efeito do trauma na mente infantil há décadas. Sabe-se que nada pode afetar tanto o desenvolvimento físico, neurológico e emocional quanto um trauma causado por uma separação, pela privação temporária, ou duradoura, do apego dos progenitores. Boa parte dessas duas mil crianças separadas das suas famílias foram distanciadas das suas mães, pais ou tios da pior maneira possível: com violência.

Este fato intensifica ainda mais o impacto do trauma. Sabe-se que, depois das separações, as crianças passam por três fases: o protesto, o desespero e, mais tarde, o desapego. Em todos esses casos, não importa se elas foram bem alimentadas, ou se tiveram cobertas as suas necessidades físicas. O vazio pela falta dos seus progenitores e a ausência da figura familiar que proporciona afeto, segurança e atenção as leva a um estado absoluto de desamparo.

Criança preocupada

 

A angústia, a origem da ferida

A ferida da separação nasce de uma fonte indiscutível: a angústia. O ser humano está programado para responder desse modo. Ou seja, quando nós somos separados da nossa família e do que é, basicamente, o nosso principal núcleo social, experimentamos uma combinação de estresse, medo e incerteza.

Todas essas emoções definem a angústia emocional, e não importa, por exemplo, que eles tenham sido pais ruins; a simples experiência de estar separados deles os coloca em um estado de desespero absoluto.

Pouco a pouco, essa situação de angústia sustentada altera a fisiologia da criança. O estresse e os hormônios, como o cortisol, começam a fazer estragos em um organismo ainda imaturo, em um cérebro ainda em crescimento, em uma mente onde, gradualmente, o trauma vai começar a se firmar.

O apego é um direito fundamental do ser humano

Nenhuma criança deveria viver a separação traumatizante dos seus pais. Atualmente, e devido aos contínuos fenômenos migratórios que acontecem no mundo inteiro, deveria se estabelecer uma prioridade essencial: o agrupamento familiar. Não podemos esquecer, por exemplo, todas as vivências prévias que essas crianças carregam nas costas junto aos seus pais: o abandono do lar, de uma casa, e a dificuldade de uma viagem que nunca é fácil ou confortável.

Se a isso nós acrescentarmos a separação e o isolamento, o impacto será devastador. Elas vão crescer com graves transtornos psicológicos e sérios problemas de integração. É necessário defender o direito ao apego como algo fundamental do ser humano, como o fio que nunca deve se romper entre uma criança e os seus pais.

Mãe consolando a filha

 

No final das contas, como dizia John Bowlby, uma criança pequena ainda não sabe o que é a morte, mas sabe o que é a ausência de uma mãe ou pai.Se as únicas pessoas que podem satisfazer as suas necessidades não estão presentes, ela vai sentir toda a angústia que pode ser proveniente da pior das ameaças. A ferida da separação vai começar a se abrir, e vai ser muito difícil cicatrizá-la mais tarde.

ohn Bowlby (1907 – 1990) foi um psiquiatra e psicanalista que acreditava que a saúde mental e os problemas de comportamento podiam ser atribuídos à primeira infância. A teoria do apego de John Bowlby sugere que as crianças vêm ao mundo biologicamente pré-programadas para formar vínculos com os demais, já que isso as ajudará a sobreviver.

Este autor foi influenciado pela teoria etológica em geral, mas especialmente pelo estudo da importância de Konrad Lorenz. Nos anos 50, em um estudo feito com patos e gansos, Lorenz demonstrou que o apego era inato e, portanto, tem um valor de sobrevivência.

Portanto, Bowlby acreditava que os comportamentos de apego são instintivos e são ativados por qualquer condição que pareça ameaçar a realização de aproximação, como a separação, a insegurança e o medo.

A teoria do apego de John Bowlby defende que as crianças são programadas biologicamente para formar vínculos com os demais.

Comportamentos inatos para a sobrevivência

Bowlby também defendeu que o medo de estranhos representa um mecanismo de sobrevivência importante, incorporado pela natureza. De acordo com ele, os bebês nascem com a tendência de demonstrar certos comportamentos inatos (chamados liberadores sociais) que ajudam a assegurar a proximidade e o contato com a mãe ou com uma figura de apego.

John Bowlby

 

Durante a evolução da espécie humana, os bebês que ficaram próximos de suas mães sobreviveram para ter seus próprios filhos. Bowlby levantou a hipótese de que tanto os bebês, quanto as mães, desenvolveram uma necessidade biológica de manter um contato entre si.

Estes comportamentos de apego inicialmente funcionam como padrões de ação fixos, e todos compartilham a mesma função. O bebê produz comportamentos inatos de “liberação social”, como chorar e sorrir, que estimulam o cuidado dos adultos. O fator determinante do apego não é a comida, mas sim o cuidado e a capacidade de resposta.

Pontos principais da teoria do apego de John Bowlby

Após a Segunda Guerra Mundial, os órfãos e crianças de rua apresentaram muitas dificuldades. Em vista disso, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu que John Bowlby escrevesse um folheto informativo sobre o tema. Bowlby intitulou o panfleto de “privação materna”. A teoria do apego surgiu a partir das questões consideradas para a elaboração deste trabalho.

A teoria do apego de John Bowlby é um estudo interdisciplinar que abrange os campos das teorias psicológicas, evolutivas e etológicas. Estes são seus pontos principais:

  1. – Uma criança tem uma necessidade inata de se unir a uma figura principal de apego (monotropia).

Embora não tenha descartado a possibilidade de outras figuras de apego para uma criança, Bowlby acreditava que deveria haver um vínculo primário muito mais importante do que qualquer outro (geralmente a mãe).

Bowlby acredita que este vínculo é qualitativamente diferente dos posteriores. Neste sentido, ele argumenta que a relação com a mãe é, de alguma forma, completamente diferente das outras relações.

Essencialmente, Bowlby sugeriu que a natureza da monotropia (apego coneitualizado como um vínculo vital e próximo com uma só figura de apego) significava que, caso o vínculo materno não fosse iniciado ou fosse rompido, produziriam-se consequências negativas, incluindo possivelmente uma psicopatia sem afeto. A teoria da monotropia de Bowlby conduziu à formulação de sua hipótese de privação materna.

A criança se comporta de maneira que provoca contato ou proximidade com o cuidador. Quando uma criança experimenta uma maior excitação, ela sinaliza ao seu cuidador. O choro, o sorriso e a locomoção são exemplos destes comportamentos de sinalização.

Instintivamente, os cuidadores respondem ao comportamento das crianças pelas quais são responsáveis, criando um padrão recíproco de interação.

Mãe com seu filho no colo

 

  1. – Uma criança deve receber o cuidado contínuo desta única figura de apego mais importante durante os primeiros anos de vida.

Bowlby afirmou que a maternidade é quase inútil se for atrasada até depois dos dois anos e meio ou três anos de idade. E mais, para a maioria das crianças, há um período crítico caso a maternidade seja atrasada até depois de 12 meses.

Se o apego é rompido ou interrompido durante o período crítico da idade, a criança sofrerá consequências dessa privação materna irreversíveis a longo prazo. Este risco continua até a idade dos cinco anos.

Bowlby utilizou o termo privação materna para se referir à separação ou perda da mãe, assim como à falta de desenvolvimento de uma figura de apego.

A suposição subjacente da hipótese de privação materna de Bowlby é que a interrupção contínua do vínculo primário poderia levar a dificuldades cognitivas, sociais e emocionais a longo prazo para o bebê. As implicações desta são enormes. Por exemplo, se isso for verdade, o cuidador principal deveria deixar seu filho numa creche?

As consequências da privação materna a longo prazo podem incluir delinquência, inteligência reduzida, aumento da agressão, depressão e psicopatia sem afeto.

A psicopatia sem afeto é a incapacidade de demonstrar afeto ou preocupação pelos demais. Estes indivíduos agem por impulso com pouca consideração pelas consequências de seus atos. Por exemplo, sem demonstrar culpa pelo comportamento antissocial.

  1. – A separação a curto prazo de uma figura de apego leva à angústia.

A angústia passa por três etapas progressivas: protesto, desespero e desapego.

  • Protesto: A criança chora, grita e protesta com raiva quando a figura de apego a deixa. A criança vai tentar se prender à pessoa para que ela não vá.
  • Desespero: Os protestos da criança começam a diminuir e parecem ficar mais tranquilos, mesmo que ainda sejam irritantes. A criança nega a si mesma todas as tentativas de comodidade dos demais e, frequentemente, parece desinteressada por qualquer coisa.
  • Desapego: Se a separação continuar, a criança começará a interagir com outras pessoas novamente. Ela vai rejeitar seu cuidador quando este voltar e mostrará fortes sinais de raiva.
Bebê chorando

 

  1. – A relação de apego da criança com o seu cuidador principal leva ao desenvolvimento de um modelo de trabalho interno.

O modelo de trabalho interno é um marco cognitivo que compreende representações mentais para entender o mundo, o eu e os outros. A interação de uma pessoa com as demais é guiada pelas lembranças e expectativas de seu modelo interno, que influenciam e ajudam a avaliar seu contato com os demais.

Aos três anos de idade, o modelo interno parece se transformar em parte da personalidade da criança e, portanto, afeta sua compreensão do mundo e as interações futuras com os demais. De acordo com Bowlby, o cuidador principal age como um protótipo para as relações futuras através do modelo de trabalho interno.

Há três características principais do modelo de trabalho interno: um modelo dos outros como de confiança, um modelo do eu como valioso, e um modelo do eu como efetivo ao interagir com outros.

Esta representação mental é a que guia o comportamento social e emocional no futuro, à medida em que o modelo de trabalho interno da criança guia sua receptividade aos demais em geral.

A teoria do apego de John Bowlby abrange os campos das teorias psicológicas, evolutivas e etológica.

As mães devem se dedicar exclusivamente ao cuidado de seus filhos quando estes ainda são pequenos?

Uma das principais críticas que esta teoria do apego recebeu está relacionada com a implicação direta que ela tem. As mães deveriam se dedicar exclusivamente ao cuidado de seus filhos quando estes são pequenos?

Weisner e Gallimore (1977) explicam que as mães são as cuidadoras exclusivas em uma porcentagem muito pequena das sociedades humanas.De fato, frequentemente outras pessoas estão envolvidas no cuidado das crianças.

Neste sentido, Van Ijzendoorn e Tavecchio (1987) dizem que uma rede estável de adultos pode proporcionar uma atenção adequada, e que essa atenção pode, inclusive, ter vantagens sobre um sistema no qual a mãe deve satisfazer todas as necessidades de uma criança.

Por outro lado, Schaffer (1990) explica que existem evidências de que as crianças se desenvolvem melhor com uma mãe que é feliz em seu trabalho do que com uma mãe se sente frustrada por ficar em casa.

A consideração final é que a teoria do apego de John Bowlby não defende a exclusividade da mãe na criação. Ela fala que é essencial que exista uma figura primária que ofereça o cuidado e as atenções necessárias na primeira etapa da vida, favorecendo a criação de um vínculo que ajudará o bebê a se desenvolver de forma plena.