Transtornos de ansiedade: a fisiologia do medo.

02/12/2018 16:51

 

Emoções são estados psicológicos que experimentamos nas mais diversas situações. Alguns exemplos são medo, nojo, alegria, tristeza e surpresa. Ocorrem associadas a um conjunto de respostas fisiológicas automáticas, que podem passar desapercebidas ou tornar-se conscientes. Algumas dessas respostas envolvem o nível de alerta, o sistema nervoso autônomo e as funções cognitivas, como a atenção e a tomada de decisão. Os sentimentos, por outro lado, são estados emocionais aos quais a sociedade atribui significados. Alguns exemplos são o amor e o orgulho. Mas, de maneira geral, costuma-se usar “sentimentos” e “emoções” de modo intercambiável. Considerando somente as respostas fisiológicas associadas dificilmente poderíamos dizer qual exatamente é o sentimento que a pessoa tem, pois ele depende da situação e de qual significado social lhe é atribuído. Ou seja, sentimentos diferentes podem envolver respostas fisiológicas muito parecidas. Contudo, há algumas diferenças entre os correlatos fisiológicos de sentimentos.

 

A ansiedade é uma emoção que temos quando percebemos ou interpretamos um evento como ameaçador. Isto é, pode se tratar de um evento ameaçador de fato ou então podemos interpretá-lo erroneamente dessa forma. A ameaça pode ser física, como quando estamos numa estrada perigosa num dia chuvoso, ou psicológica, por exemplo, se pensarmos que podemos perder o controle. Vem acompanhada de respostas fisiológicas no organismo, que fica preparado para lutar ou fugir. Nós nos sentimos apreensivos, nervosos, tensos e com medo, além de nos engajarmos em estratégias de enfrentamento ou de evitação.

 

Ansiedade pode ser facilmente confundida com medo, por isso é importante distinguir ambos. Medo é uma emoção que ocorre quando entramos em contato com um estímulo ameaçador identificável e envolve uma série de respostas fisiológicas, cognitivas e comportamentais no sentido de evitar a ameaça. Tem função adaptativa e costuma ser transitório, isto é, assim que o perigo acaba o medo tende a passar. Já a ansiedade tem uma duração maior, envolve respostas que ocorrem devido a indicações de perigo iminente bem definidas ou a situações ambíguas que são interpretadas como indicação de risco, dentre as quais podem estar eventos externos ou até mesmo expectativas negativas. Além disso, o estímulo causador da ansiedade frequentemente não é identificado. Também pode ser adaptativa pois, ao manter o alerta, a vigilância e o tônus muscular elevados, aumentam a chance de sobrevivência em situações possivelmente perigosas, como quando temos que atravessar uma via muito movimentada. A ansiedade pode ser inadequada se interpretarmos equivocadamente como potencialmente perigosa uma situação segura, se persistir mesmo após o perigo ter passado ou se a resposta produzida pela ansiedade for muito intensa. Nesses casos, a ansiedade pode prolongar-se desnecessariamente, causar sofrimento psicológico e ser até mesmo incapacitante.

 

A ansiedade pode resultar da expectativa sobre um evento futuro, como apresentar um seminário, prestar depoimento ou encontrar o crush, e não ocorrer em diversas outras situações cotidianas. Isso depende em larga medida da história do indivíduo com aqueles contextos. Contudo, há quem apresente uma tendência de perceber como ameaçadores um grande número de estímulos e de manifestar altos níveis de ansiedade. Além disso, dispõe de estratégias mais ou menos padronizadas para lidar com essas situações. Podemos dizer que, nesses casos, a ansiedade configura-se como um traço de personalidade. Outras características que costumam acompanhar esse traço são os sentimentos de preocupação, inferioridade e indecisão. Dizemos que quanto maior a tendência de interpretar eventos como ameaçadores mais intenso é esse traço de personalidade. Traços de personalidade ansiosa também são desenvolvidos e modelados pela experiência, como veremos mais a frente. Não é raro, para essas pessoas, pensar que a sua manifestação de ansiedade é aparente para os outros. Não obstante, esse pensamento pode retroalimentar a ansiedade.

 

Casos mais graves, em que a ansiedade ocorre de forma mais sistemática e incapacitante, podem ser considerados transtornos. A definição de transtorno psiquiátrico é um assunto espinhoso, de modo que uma discussão aprofundada será feita em outro momento. Para fins didáticos e de comunicação, consideramos a definição e os quadros diagnósticos usados no DSM-V. Porém, antes de dar prosseguimento, cabe ressaltar que diagnósticosde transtornos mentais devem ser realizados por profissionais da saúde mental. Trata-se de um processo minucioso, no qual são feitas avaliações cuidadosas das funções psicológicas, investiga-se a história de vida da pessoa, incluindo as enfermidades das quais sofreu, o contexto social, a rotina e as relações com pessoas próximas. Todos esses fatores são considerados para a elaboração da hipótese diagnóstica. Com isso, quero dizer que não é para tentar encaixar-se em alguma das categorias abaixo.

 

Nas aulas de psicopatologia, além de mim, vários colegas acabavam se identificando com uma ou outra categoria. Isso é normal e até esperado. Contudo, é importante saber que temos vieses cognitivos que nos fazem valorizar aquelas informações que confirmam nossas crenças prévias enquanto fazemos vistas grossas ao que vai contra elas. Então, se você pensa que é uma pessoa muito ansiosa, é possível que acabe se enxergando em algumas das seguintes categorias, o que não implica que realmente tenha tal transtorno. Essa auto-categorização funciona de maneira semelhante à identificação com descrições de signos do zodíaco. Entretanto, caso você sofra com ansiedade e isso afete sua vida de alguma forma, vale a pena procurar ajuda especializada, seja de psicóloga, psiquiatra ou mesmo nas Unidades Básicas de Saúde ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Feita a ressalva, podemos continuar.

 

Embora haja outros transtornos, preferimos, por conveniência e didática, abordar apenas quatro. São eles:

 

  1. Transtorno de ansiedade generalizada (TAG): a principal característica é o excesso de ansiedade e preocupação ou apreensão com uma grande variedade de eventos ou atividades. A pessoa considera muito difícil de controlar essa preocupação. Alguns outros sintomas como irritabilidade emocional, tensão muscular e problemas de sono também estão associados.
  2. Transtorno de fobia social: consiste do medo ou ansiedade de, em dado contexto social, ser avaliado pelos outros geralmente como chato, louco, fraco, estúpido ou ansioso. Essas situações são evitadas sempre que possível. Quando inevitáveis, provocam intenso medo ou ansiedade.
  3. Transtorno de fobia específica: é caracterizado como ansiedade ou medo desproporcionais de um objeto ou situação específicos, como um animal, ver sangue, tomar injeção ou voar. Sempre que possível, tal estímulo é evitado. Se inevitável, o medo e a ansiedade são muito intensos e aparecem imediatamente.
  4. Transtorno de pânico (TP): ataques recorrentes e inesperados nos quais ocorrem múltiplos sintomas fisiológicos e cognitivos de medo. Coração disparado, suor excessivo, tremedeiras, dor no peito, sensação de que está sufocando, náusea, sensação de desrealização e despersonalização, medo de perder o controle e de morrer. Os ataques podem acontecer mesmo sem a pessoa estar se sentindo ansiosa. Também podem ocorrer ataques de pânicos em pessoas diagnosticadas com vários outros transtornos.

 

A FISIOLOGIA DO MEDO

 

Quando levamos um choque ou escutamos uma freada brusca por perto, somos tomados por uma série de sensações. Podemos sentir o coração acelerado, um friozinho na barriga, os músculos contraídos e um forte impulso para sair do local. Essas reações associadas com o medo fazem parte da resposta de luta ou fuga. Imagine a situação na qual você está andando tranquilamente na rua, quando, de repente, ouve um som intenso de pneu cantando vindo na sua direção. Você deve sair da frente do carro desgovernado imediatamente para que possa sobreviver. No entanto, seu organismo estava num estado inapropriado para executar rapidamente esses movimentos. Então, são necessárias uma série de mudanças fisiológicas, iniciadas pela ação da divisão simpática do sistema nervoso autônomo. Essa divisão funciona como um sistema “tudo-ou-nada”, isto é, devido a suas propriedades anatômicas o sistema nervoso autônomo, quando acionado, inicia todas as respostas a seguir. Assim, não é possível sentir uma das alterações sem que as demais ocorram.

 

 

De antemão, não é possível saber a intensidade e a duração dos movimentos que você deve realizar para se colocar em segurança novamente. Então, por precaução, o sangue que irriga a pele e os órgãos internos, por vasoconstrição, é redirecionado para os músculos. Por isso você fica pálido(a), sente frio nas extremidades e tem até mesmo formigamentos. Um potencial grande de esforço demandaria uma grande quantidade de energia, assim, o nível de glicose no sangue aumenta rapidamente. É preciso que o sangue circule depressa para levar oxigênio e remover gás carbônico das células musculares e, em função disso, o ritmo cardíaco é aumentado. A respiração se torna mais rápida, o que possibilita mais trocas gasosas nos alvéolos pulmonares, mas também pode provocar dor no peito ou mesmo sensação de falta de ar. Mais à frente examinaremos melhor o papel da respiração na ansiedade e no pânico. A pupila dilata, permitindo maior entrada de luz, e a salivação se torna escassa. Como o organismo está na iminência de efetuar um grande esforço muscular, cuja consequência é produção de calor, as glândulas sudoríparas secretam bastante para manter a temperatura interna estável. Os músculos tendem a ficar tensionados, o que pode gerar tremores ou mesmo dor. Também ocorre a ereção dos pelos. Então você sai da frente do carro e fica em segurança. Tudo isso, que ocorre em frações de segundo, é experimentado quando ficamos com medo. Como salientado, a ansiedade é um estado semelhante ao medo, mas que tem uma duração maior e é iniciado mesmo sem um perigo real estar presente, por isso essas alterações tendem a ser mais persistentes na ansiedade. Pessoas muito ansiosas costumam ter os músculos tensionados, boca seca e excesso de sudorese, que são respostas controladas pelo sistema nervoso simpático.

 

As informações dos eventos ameaçadores são processadas na amígdala. Trata-se de uma região subcortical que recebe aferências de todos os órgãos e inicia as respostas comportamentais e fisiológicas adequadas. A partir disso, a amígdala ativa várias outras regiões cerebrais envolvidas na produção das respostas fisiológicas que mencionamos acima. Isso geralmente ocorre antes das informações serem processadas no córtex cerebral, que é a estrutura responsável por nos deixar conscientes da ameaça. Ou seja, quando tomamos consciência do perigo as respostas fisiológicas e emocionais já foram disparadas. Isto é, se chegarmos a tomar consciência. Se não formos treinados a voltar nossa atenção para o que está acontecendo a nossa volta, podemos deixar passar aquele evento que causou a ansiedade e perceber apenas as nossas alterações emocionais. Isso, contudo, é importante, pois, assim, o tempo de reação é menor e aumenta a probabilidade de sobrevivência. Além da ativação do sistema nervoso simpático, a amígdala modula a atenção e influencia na tomada de decisão. Por exemplo, na presença de uma ameaça, sentimos um forte impulso para agredir ou evadir o local e isso influi na decisão que viermos a tomar.

 

É importante notar que todas essas reações não são perigosas pro organismo; são, na verdade, protetivas, pois tem função de prepará-lo para sobreviver. Contudo, como veremos no decorrer deste texto, seus efeitos desagradáveis no organismo, embora não sejam perigosos, podem ser interpretados como sinal de que alguma coisa errada está acontecendo e aumentar a ativação simpática.

 

Não dá para saber quando enfrentaremos ameaças novamente. É importante reter informações relevantes de situações anteriores para estar mais bem preparados para enfrentá-las. Assim, ao atravessar aquela mesma rua em que quase foi atropelado, o indivíduo do nosso exemplo estará muito mais atento. Dentre as informações retidas, algumas delas adquirem a função de indicar perigo em situações futuras. Por exemplo, uma criança que é mordida por um cachorro tende a vivenciar todas aquelas reações fisiológicas ao simplesmente ver o cachorro que a mordeu. O processo que faz com que um estímulo outrora neutro adquira papel de produzir essas respostas no organismo é chamado de condicionamento clássico – o qual será abordado minuciosamente no próximo texto.

 

Autor: Rafael Bossoni


 

REFERÊNCIAS

 

Barlow, D. H., Craske, M. G., & Mercier, M. A. (1999). Mastery of your anxiety and panic II: Client workbook. Journal of Cognitive Psychotherapy, 13(4), 380-383.

 

Crake, B. (1994). Fisiologia e Psicologia do Medo e da Ansiedade. Tradução de Bernard Rangé.[Internet][1994]. Disponível em: https://pospsicopatologia. com. br/paula/Paula_Fisiologia_e_Psicologiado_medo_e _da_ansiedade. pdf.

 

Diagnostic, D. S. M. V. (2013). statistical manual of mental health disorders: DSM-5. 5.