Somos levados a fabricar um inimigo como um bode expiatório

02/02/2018 15:50
cuidardoser |
 
, para carregar o fardo da inimizade que reprimimos. Do resíduo inconsciente da nossa hostilidade, criamos um alvo; dos nossos demónios particulares. As guerras em que nos envolvemos talvez sejam, no fundo, rituais compulsivos, dramas da sombra nos quais continuamente tentamos matar aquelas partes de nós mesmos que negamos e desprezamos.
 
A nossa melhor esperança de sobrevivência está em mudar o modo como pensamos os inimigos e a guerra. Em vez de sermos hipnotizados pelo inimigo, precisamos de começar a observar os olhos com os quais vemos o inimigo. Vamos agora explorar a mente do Homo hostilis: vamos examinar em detalhe as maneiras como fabricamos a imagem do inimigo, como criamos um excesso de mal, como transformamos o mundo num campo de matança.
 
Parece improvável que alcancemos qualquer sucesso no controle da guerra a menos que cheguemos a compreender a lógica da paranóia política e o processo de criação da propaganda que justifica a nossa hostilidade. Precisamos de tomar consciência daquilo a que Carl Jung chamou a sombra.
 
Os heróis e líderes pacifistas do nosso tempo serão aqueles homens e mulheres com coragem para mergulhar nas trevas do fundo da psique pessoal e colectiva, e enfrentar o inimigo interior. A psicologia das profundezas presenteou-nos com a inegável sabedoria de que o inimigo é construído a partir de aspectos reprimidos do Si Mesmo [O Si Mesmo é o núcleo consciente da psique, o nó mais íntimo da nossa Consciência] .
 
Portanto, o mandamento radical “Ama os teus inimigos como a ti mesmo” indica o caminho tanto para o auto-conhecimento como para a paz. Na verdade, amamos ou odiamos os nossos inimigos na mesma medida em que nos amamos ou odiamos a nós mesmos. Na imagem do inimigo, encontraremos o espelho no qual podemos ver a nossa própria face com a máxima clareza.
 
Mas é um facto que existem agressores, impérios do mal, homens e mulheres perversos no mundo real. Existiram e existem vilões reais – Hitler, Estaline, Pol Pot (líder do Khmer Vermelho do Camboja, responsável pela morte de dois milhões de pessoas do seu próprio povo). Assim como só entendemos a luz quando a consideramos como onda e partícula, só poderemos estudar realmente o problema da guerra vendo-a como um sistema que é sustentado por estes pares:
 
A psique guerreira                  e               A cidade violenta
Paranóia                                  e               Propaganda
A imaginação hostil                 e               Os conflitos geopolíticos e de valores entre os países
 
O pensamento criativo sobre a guerra sempre envolverá a consideração da psique individual e das instituições sociais. A sociedade molda a psique e vice-versa. Portanto, temos de trabalhar para criar alternativas psicológicas e políticas à guerra, mudando a psique do Homo hostilis e a estrutura das relações internacionais. Ou seja, trata-se tanto de uma heróica jornada no Si Mesmo quanto de uma nova forma de política compassiva.
 
Não temos nenhuma possibilidade de reduzir as guerras a não ser que observemos as raízes psicológicas da paranóia, da projecção e da propaganda; a não ser que deixemos de ignorar as cruéis práticas de educação dos jovens, as injustiças, os interesses especiais das elites no poder, os históricos conflitos raciais, económicos e religiosos, e as intensas pressões populacionais que sustêm o sistema da guerra.
 
A paranóia envolve um complexo de mecanismos mentais, emocionais e sociais; através dele uma pessoa, ou um povo, reivindicam para si rectidão e pureza, e atribuem hostilidade e mal ao inimigo. O processo começa com uma divisão entre o lado “bom”, com o qual nos identificamos conscientemente e que é celebrado pela mitologia e pelos media, e o lado “mau”, que permanecerá inconsciente na medida em que puder ser projectado sobre um inimigo. Através dessa prestidigitação, fazemos com que as partes inaceitáveis do ser humano – as suas avidez, crueldade, sadismo, hostilidade, aquilo a que Jung chamou a sombra – desapareçam e só as reconheçamos como qualidades do inimigo. A paranóia reduz a ansiedade e a culpa ao transferir para o outro todas as características que a pessoa não quer reconhecer em si mesma.
 
Ela é mantida pela percepção selectiva e pela reevocação. Nós vemos e reconhecemos unicamente os aspectos negativos do inimigo que sustentam o estereótipo que já criámos. Por isso, a televisão norte-americana transmite principalmente as más notícias sobre os russos, e vice-versa. Lembramo-nos apenas das evidências que confirmam os nossos preconceitos.
 
A melhor ilustração da feição paranóica está, sem dúvida, na propaganda anti-semita. Para o anti-semita, o judeu é a fonte do mal. Por detrás dos inimigos acidentais e históricos da Alemanha – Inglaterra, Estados Unidos, Rússia – sempre esteve emboscado o judeu conspirador. A ameaça era simples e oculta a um olhar casual, mas evidente para aqueles que realmente acreditavam na supremacia ariana.
 
Dentro dessa lógica retorcida, fazia sentido para os nazis desviar os comboios tão necessários ao transporte das tropas até à frente a fim de levar os judeus aos campos de concentração para a “solução final”. Para a mente paranóica, a própria noção de igualdade é impossível. Um paranóico precisa de ser sadicamente superior e dominar os outros, ou masoquisticamente inferior e sentir-se ameaçado por eles.
 
O Homo hostilis é incuravelmente dualista, um maniqueu moralista:
 
Nós somos inocentes.
                                   Eles são culpados.
Nós dizemos a verdade – informamos.
                                   Eles mentem – usam propaganda.
Nós apenas nos defendemos.
                                 Eles são agressores.
Nós temos um departamento de defesa.
                               Eles têm um departamento de guerra.
Os nossos mísseis e armamentos destinam-se a dissuadir.
                              As armas deles destinam-se a atacar primeiro.
 
O mais terrível de todos os paradoxos morais, o nó górdio que precisa de ser cortado se queremos que a História prossiga, é que criamos o mal a partir dos nossos ideais mais elevados e das nossas mais nobres aspirações. Tanto precisamos de ser heróicos, de estar ao lado de Deus, eliminar o mal, limpar o mundo e vencer a morte, que vemos destruição e morte em todos aqueles que se põem no caminho do nosso heróico destino histórico.
 
Procuramos bodes expiatórios e criamos inimigos absolutos, não por sermos intrinsecamente cruéis mas porque o fato de focalizarmos a nossa raiva sobre um alvo externo e atingirmos um estranho faz com que a nossa raça ou nação se una, e tal fato permite-nos fazer parte de um grupo restrito e bom. Criamos um excesso de mal porque precisamos de pertencer a um lugar que queremos chamar “nosso”.
 
 Por que é que a sociedade reconhece e celebra a coragem daqueles que lutam contra as tentações demoníacas do Ser, que empreendem uma guerra santa contra tudo o que é mau, distorcido, perverso e ofensivo do Si Mesmo?
 
Se queremos a paz, cada um de nós precisa de começar a desmistificar o inimigo; de deixar de politizar os eventos psicológicos; de reassumir a sua sombra; de fazer um estudo complexo das mil maneiras pelas quais reprimimos, negamos e projetamos o nosso egoísmo, crueldade, avidez, etc. sobre os outros; de consciencializar a maneira pela qual, inconscientemente, criamos uma psique guerreira e perpetuamos as muitas formas de guerra.