Sobre a personalidade de pessoas e peixes

02/12/2018 16:34

 

Quando as pessoas falam de personalidade no cotidiano, elas se referem a características individuais. Mais do que isso, provavelmente usam esse termo para se referir às diferenças entre as pessoas, ao que me faria diferente de você. No cotidiano gostamos muito de falar “cada um é cada um” ou algo equivalente, e nesses contextos às vezes surge um “mas isso vai da personalidade de cada um”. Tecnicamente, isso não é muito diferente do que psicólogos entendem por personalidade. Mas o conhecimento científico é um pouco mais específico, enquanto o conhecimento da psicologia do senso comum é tão geral que fica difícil extrair conclusões mais específicas do que o mínimo requerido para se virar na comunicação cotidiana.

 

O objetivo desse texto é mostrar o que estudos científicos da psicologia dizem sobre a personalidade. Nesse percurso você vai descobrir que a personalidade tem muito mais a ver com a genética do que com o ambiente, muito embora o ambiente tenha sua parcela explicativa também. Vai descobrir também que personalidade é algo tão central para explicar o comportamento das pessoas que estatisticamente é possível até predizer osucesso profissional com base nas diferenças de personalidade.

 

Sendo influenciada em grande parte pela diferença genética entre as pessoas, a personalidade está sujeita à seleção natural e, possivelmente, sexual. Ambientes com mais escassez de alimento e maior índice de doenças acabam selecionando pessoas com traços de personalidade específicos, por isso que, estatisticamente, existem diferenças nos traços de personalidade entre populações.

 

Ainda mais surpreendente é o fato de que outros animais parecem ter personalidade também. Isso tem sérias repercussões sobre como pensamos sobre a psicologia e a evolução humana. Isso é mais um pontapé na noção tradicional de que a evolução molda os organismos para responderem de maneira fixa ao ambiente. Na verdade, em termos evolutivos, flexibilidade é bom. Peixes de uma espécie de peixe qualquer vão variar entre si, assim como seres humanos vão variar entre si, apesar de todos serem de uma mesma espécie.

 

O que é personalidade?

 

Uma definição mais simples possível, deve partir do princípio de que a personalidade é o termo dado para características individuais. Quando nos comparamos com outras pessoas percebemos que nos parecemos em vários aspectos, mas que também nos diferenciamos. Cada indivíduo é diferente do outro.

 

Modelos científicos existem com base na observação de padrões. Se estamos falando essencialmente de diferença, como tratar isso cientificamente?

 

Percebemos poucos padrões importantes numa análise individual, mas os padrões de amostras de pessoas se tornam absolutamente claros, como diria Sir Arthur Conan Doyle. Imagine o seguinte: pedimos a um grupo de 100 pessoas para citar características que consideram importantes de se analisar nas outras pessoas. Adjetivos que usamos no dia-a-dia para descrever a nós e aos outros.

 

Certamente apareceriam palavras como “ansioso”, “perfeccionista”, “bondoso”, “impaciente”, “ciumento”, “desapegado”, “sociável”, “introvertido”, “desconfiado” e etc. Se levarmos em conta o inglês, surgiriam em torno de 5000 palavras desse tipo — segundo o manual da Bateria Fatorial de Personalidade, um dos testes de personalidade mais usados no Brasil.

 

Propor um modelo da estrutura da personalidade com base nessas milhares de palavras é humanamente impossível. O pesquisador teria que ser capaz de detectar padrões entre todos esses termos. A solução veio junto com o avanço da informática e de técnicas de análise estatística. Utilizando-se testes estatísticos mais sofisticados, descobriu-se que todos esses termos que as pessoas costumavam usar em seus idiomas, se agrupavam em 5 grandes grupos: neuroticismoextroversãoagradabilidadeconscienciosidade(ou realização) e abertura à experiência.

 

Esses grandes grupos de traços de personalidade, também chamados fatores ou dimensões, formam o modelo dos Cinco Grandes Fatores da Personalidade ou simplesmente Big-Five. Esse modelo embasa diversos testes ao redor do mundo, e é corroborado por diversos estudos transculturais, o que sugere que a personalidade não varia arbitrariamente ao longo das culturas, mas que segue uma estrutura universal. Aparentemente, diferentes pessoas têm níveis mais baixos ou mais altos nas mesmas cinco dimensões da personalidade.

 

Diferenças individuais nos homens e nos animais

 

 

A existência de diferenças individuais não é exatamente algo novo. Isso tem sido documentado desde Aristóteles. Inclusive, mostrando que essas diferenças valem para outras espécies também.

 

Quem já pescou ou mergulhou alguma vez na vida conhece bem de perto as diferenças individuais entre peixes. Ao se deparar com um estímulo novo (anzol ou mergulhador), alguns peixes tendem a se afastar, enquanto outros destemidamente se aproximam, exploram, observam.

 

Uma modesta revisão realizada pelo biólogo David Sloan Wilson mostra que peixes de uma mesma espécie mostram uma rica variação comportamental, a despeito de serem da mesma espécie. Essa facilidade com que um peixe explora ambientes novos e se aproxima de estímulos desconhecidos indica um nível de capacidade de correr riscos, digamos assim. Esse disposição é um dos traços de uma das cinco grande dimensões da personalidade, a extroversão.

 

 

Experimentos mostram muito claramente como peixes variam entre si nessa disposição a correr riscos. Num dos estudos citados por Wilson, os cientistas sacrificaram e dissecaram peixes após observar seu comportamento e medí-los quanto à disposição a correr riscos explorando o ambiente. Peixes que tinham menos aversão ao risco, que eram mais extrovertidos, por assim dizer, tinham mais comida no intestino do que os peixes mais introvertidos, que preferiam a segurança do que correr risco explorando um ambiente potencialmente hostil.

 

Ambientes com pouca fartura de alimento talvez selecione os indivíduos da espécie que são mais enxeridos, que fuçam lugares e riem da cara do perigo. É possível que ambientes com escassez de alimento e com altos níveis de predação acabem selecionando o padrão oposto. Indivíduos um pouco mais reservados, introvertidos, podem levar vantagem por se exporem menos ao perigo certo.

 

A personalidade, como traço herdável, é adaptativa

 

O resultado do estudo descrito anteriormente não significa que é bom ser extrovertido e ruim ser introvertido. Ser mais extrovertido, mais introvertido, não importa, cada tendência comportamental traz seus prós e contras.

 

Em outras palavras, o que foi explicado acima significa que a relação desses traços de personalidade com a genética os torna também submetidos à evolução. A extroversão é a dimensão de traços de personalidade onde mais nitidamente se observa o quanto essas tendências podem ser adaptativas em determinados ambientes.

 

A extroversão tem relações importantes com outras variáveis associadas ao sucesso reprodutivo. Quanto maior o nível de extroversão, maior o número de parceiros sexuais. Quanto maior a extroversão, maior tendência a ser infiel nos relacionamentos amorosos, maior o número de relacionamentos amorosos ao longo da vida e menor a duração de cada um deles.

 

Levando em conta cálculos evolutivos, esse conjunto de custos e benefícios relacionados à extroversão são especialmente vantajosos para os homens. Isso acontece por causa de um gargalo evolutivo muito básico entre mamíferos: o custo reprodutivo do macho é bem menor que o da fêmea. Entre mamíferos, fêmeas gastam seu provável único gameta numa única reprodução, e ficam meses gestando seus filhos, para após a concepção ficarem mais algum tempo amamentando. Enquanto isso, machos geram milhões de gametas por dia e podem copular mais de uma vez, com mais de uma fêmea, no mesmo período em que uma fêmea ficaria gestante e impossibilitada de gerar mais descendentes.

 

Matematicamente, num mesmo período de tempo, machos podem gerar mais descendentes do que as fêmeas. Isso repercute no comportamento sexuais que machos e fêmeas mamíferos tendem a apresentar. Entre humanos, homens tendem a ser mais infiéis que mulheres (mas nem sempre; homens e mulheres podem ter os mesmos níveis de infidelidade, mas podem ser infiéis em diferentes contextos, visando diferentes objetivos). Mas as mulheres tendem a ser mais infiéis quando estão em período fértil (o que tem a ver com a mudança de preferências amorosas nessa fase fértil, segundo recentemetanálise). Também há associação entre níveis altos de extroversão em mulheres e engravidar de parceiros diferentes.

 

Da mesma forma, parece ser mais vantajoso para os homens, do que para as mulheres, ter mais parceiros amorosos. De fato, homens tendem a desejar ter mais parceiros sexuais ao longo da vida do que as mulheres — o que, claro, não necessariamente corresponde à prática.

 

Em suma, homens, comparando com mulheres, parecem tender a desejar ter mais parceiros sexuais e parecem mais infiéis. Entre homens, os que são mais extrovertidos tendem muito mais a esses comportamentos do que aqueles mais introvertidos.

 

Esses comportamentos podem ser traduzidos numa expressão: baixo investimento parental. Se pessoas (especialmente homens) mais extrovertidas tendem a preferir relacionamentos amorosos mais curtos, talvez sem compromisso, isso significa que há mais chances de abandono da cria entre pessoas mais extrovertidas. Isso parece ser o caso, pelo menos entre tribos de caçadores-coletores.

 

Em termos estritamente sociais, também existem vantagens na extroversão. Esses indivíduos costumam receber mais apoio social, além de iniciar mais contatos sociais. Extrovertidos também exploram mais o ambiente em que estão, e buscam novos ambientes, novas experiências.

 

Contudo, como todo trade-off, em determinado grau essas características acabam gerando problemas. Não por acaso, homens mais extrovertidos (e mulheres também) tendem a contrair não apenas mais doenças sexualmente transmissíveis, mas doenças em geral também. A maior parte dos acidentes de carro acontecem por imprudência de motoristas com elevados níveis de extroversão. A busca por experiências fortes também faz essas pessoas serem fãs de esportes radicais, o que pode explicar a significativa proporção de extrovertidos entre alpinistas — inclusive entre os mortos.

 

 

Conclusão

 

Resumidamente, o objetivo deste texto foi fornecer informações básicas sobre o que tecnicamente os psicólogos querem dizer quando usam o termo personalidade. No senso comum usamos essa palavra de forma muito genérica, mas tecnicamente ela tem a função específica de se referir a características dos indivíduos que variam pouco ou nada ao longo de suas vidas.

 

A maior parte da variação entre indivíduos quanto à personalidade se deve à genética. O termo cientificamente correto para isso é herdabilidade. Estudos quantitativos tentam mapear o quanto genética e ambiente são responsáveis por explicar o quanto dado traço varia entre indivíduos. Esses estudos mostram consistentemente que, por exemplo, o que faz indivíduos serem mais ou menos extrovertidos é a herdabilidade, não diferenças quanto ao ambiente dessas pessoas.

 

Se a personalidade é robustamente explicada pela herdabilidade, isso significa que deve haver algum trade-off evolutivo em jogo. Expliquei isso usando como exemplo a extroversão, um dos cinco grandes fatores de personalidade. Extroversão compreende traços ligados à disposição em socializar, a correr riscos e a buscar novidade. Ser mais ou menos extrovertido pode ser adaptativo ou não, dependendo dos desafios que o ambiente oferece.

 

Se a personalidade consiste em características básicas com poder de predizer tendências comportamentais ao longo da vida das pessoas. Se essas características são explicadas em grande parte pela herdabilidade, isso tem tudo a ver com a evolução. Se tem a ver com evolução, há uma história filogenética em comum que faz espécies diferentes compartilharem características. Por isso é possível ver diferenças em traços básicos — em outros termos, diferenças de personalidade — entre indivíduos de outras espécies, como peixes.

 

Diferenças individuais são vistas tradicionalmente como contraditórias com a evolução. Isso é fruto do erro comum de entender que biologia não tem a ver com variação, mas só com universalidade. Personalidade é um dos temas que mostram mais didaticamente o quanto variação de comportamento não só é compatível com a evolução quanto também desejável.