Uma das consequências ocasionadas pelo abuso sexual é o alto grau de tensão gerado, em que são modificados os padrões de respostas comportamentais e cognitivas, podendo desencadear um transtorno mental. O funcionamento cognitivo e comportamental do indivíduo que sofreu abuso apresenta uma série de distorções passíveis de modificações, indo ao encontro da premissa principal da Terapia Cognitiva, de que as percepções sobre si, os outros e o mundo que o cercam, alteram seus comportamentos e emoções.
O abuso sexual, ainda, pode manifestar diversas respostas psicológicas como queixas sintomáticas, quadros fóbicos e ansiosos, distúrbios do sono, sentimento de rejeição, níveis intensos de medo, ansiedade, raiva, cognição distorcida, sensação crônica de perigo e culpa excessiva (DAY, 2003), e há a possibilidade da ocorrência de respostas somáticas que se manifestam na forma de dores abdominais agudas, náuseas e vômitos (GABEL, 1997).
Desse modo, tanto em um caso de ansiedade advinda do abuso sexual quanto de outros transtornos, para se atingir os objetivos durante o processo terapêutico o paciente precisa aprender a delimitar problemas específicos, identificar os fatores causais e avaliar a veracidade de suas crenças, para assim iniciar-se o processo de modificação (KNAPP, 2004; OLIVEIRA, SILVA, & SZUPSZYNSKI, 2011). Todas as etapas alteram as variáveis que mantêm as crenças, emoções e comportamentos, em interações que alteram a si mesmas de maneira dialética (KNAPP, 2004; KNAPP & BECK, 2008).
Nesse contexto, a Terapia Cognitivo-Comportamental tem apresentado evidências substanciais no tratamento dos transtornos ansiosos, detendo eficácia bem estabelecida no uso das técnicas de modelagem, práticas de reforço, manejo de ansiedade, autoinstrução, entre outras (PHEULA & ISOLAN, 2007).
A seguir, serão apresentadas algumas técnicas para sessões iniciais, utilizadas em um programa interventivo, no qual se utilizou como método a Terapia Cognitivo-Comportamental. Em textos posteriores serão discutidas técnicas focadas nos pensamentos automáticos, pressupostos adjacentes e crenças nucleares.
PRIMEIROS PASSOS DA INTERVENÇÃO

O primeiro passo, independente da atividade terapêutica, é a Avaliação Psicológica, porém, discorreremos sobre esse tema especificamente em textos subsequentes. A partir dos dados obtidos no processo avaliativo, em que se conhece a história de vida, estrutura familiar, traumas ocorridos, consequências resultantes desses traumas, análise funcional e conceituação cognitiva, torna-se possível delimitar objetivos específicos a serem alcançados nas sessões, estes definidos em comum acordo com a paciente.
As escolhas das técnicas se definem a partir da delimitação dos objetivos específicos sendo programadas na medida em que as sessões ocorrem e as demandas surgem, sendo a Conceituação Cognitiva um norteador primordial para a escolha de intervenções efetivas, pois permite compreender as crenças que estruturam o funcionamento cognitivo (KNAPP, 2004).
As vítimas de violência, sejam elas de violência sexual ou agressão, evitam sair de casa, tem medo de andarem sozinhas e possuem dificuldades de contato físico, comportamentos que aumentam a probabilidade de afastar os estímulos aversivos, caracterizando um padrão frequente de esquiva e fuga (MOREIRA & MEDEIROS, 2007; SILVA, 2000).

Uma vítima de abuso sexual pode relatar: “Estava andando pela rua e percebi um grupo de pessoas conversando. Senti medo e atravessei para o outro lado tentando caminhar o mais rápido que podia”. Nessa breve situação podemos observar uma série de respostas, cognitivas e comportamentais, importantes para a intervenção. Ao se indagar, por exemplo, “além do medo, o que a levou se esquivar dessa situação?”, permite que o terapeuta identifique algumas das regras que mantêm o comportamento de esquiva. A partir da resposta ao questionamento: “Não existem pessoas boas, eles podem me fazer mal. E também tenho vergonha de mim” é possível identificar as crenças nucleares do paciente, acerca de si e do mundo.
As crenças nucleares são basicamente as “lentes” com que os indivíduos interpretam o mundo. A partir dela são expressas as crenças adjacentes que mantêm pressupostos e ditam a forma como o indivíduo se comporta e atua nas diversas contingências que acessa (KNAPP, 2004). É a partir de esquemas disfuncionais, que crenças nucleares se mantêm como distorções cognitivas. As distorções cognitivas são uma forma exagerada de interpretar determinada situação (KNAPP & BECK, 2008).

Para explorar as crenças nucleares, com intuito de identificar os pressupostos do paciente, pode-se expandir a investigação e solicitar sua visão sobre si, do mundo e expectativas acerca do futuro. Um paciente que sofreu abuso detém crenças nucleares disfuncionais, podendo ter como visão de si: “não sou ninguém”; “não iria fazer falta”; “não consigo me proteger”; “tenho vergonha de mim”, visão de mundo: “não existem pessoas boas”; “ninguém é feliz”; “todos são melhores que eu”, e visão de futuro: “não vou conseguir chegar aos meus 20 anos”.
Os estudos realizados por Foa e colaboradores (KRISTENSEN, SCHAEFER, & MELLO, 2011) mostram que os comportamentos emitidos por indivíduos vítimas de traumas, entre eles o abuso sexual, são resultados de mudanças significativas nos esquemas desses sujeitos, ou seja, aquisição de distorções cognitivas em que a auto responsabilização é uma das cognições principais. A técnica a Torta da Responsabilidade para Culpa ou Vergonha se apresenta como ferramenta eficaz para modificação de distorções de auto responsabilização, ou seja, a culpa. A partir do gráfico o indivíduo consegue analisar todas variáveis que compõe o evento que elicia a culpa ou vergonha e pode distribuir responsabilidades às pessoas envolvidas (GREENBERGER & PADESKY, 1999; FRIEDBERG, MCCLURE, & GARCIA, 2011).
Na medida em que se acessa as crenças nucleares de um paciente — assunto discorrido na parte 1 e que pode ser encontrado aqui — é possível explanar a influência dos pensamentos na forma em que os indivíduos agem no mundo, e suas implicações, quando estes variam em excesso em relação à forma de outras pessoas verem o mundo, ou seja, as distorções cognitivas (KNAPP & BECK, 2008). O Registro de Pensamentos Disfuncionais(RPD), modelo descrito pelos autores Greenberger e Padesky (1999), se apresenta como uma técnica eficaz para observar operacionalmente os pensamentos automáticos, se caracterizando como a base para a identificação, exame e modificação da cognição (KNAPP, 2004; NEUFELD & CAVENAGE, 2010; GREENBERGER & PADESKY, 1999).
A partir do RPD, analisa-se funcionalmente cada elemento do evento eliciador de respostas disfuncionais permitindo perceber o modo como essa contingência é interpretada por si mesma. Na medida em que o paciente conhece os determinantes de seus comportamentos e como se dá suas interpretações a partir de suas crenças, é possível a generalização dessa análise para outros contextos similares, e eliminar as interpretações disfuncionais também de outros contextos, promovendo mudanças graduais no sistema que rege o funcionamento do sujeito, as crenças nucleares (KNAPP, 2004; NEUFELD & CAVENAGE, 2010).
O RPD se caracteriza em um Exame de Evidências, tendo por método a Descoberta Guiada a partir do Questionamento Socrático, em que esses questionamentos servem como linhas orientadoras para o entendimento do problema e exploração de possíveis soluções que se definem como descatastrofização. A Descoberta Guiada aumenta a frequência do envolvimento do paciente, permitindo com que se sinta agente ativo no processo terapêutico, aprendendo a conhecer suas performances frente aos contextos (KNAPP, 2004; CAMINHA, FEILSTRECKER, & HATZENBERGER, 2003). Em textos subsequentes serão explicados a origem dessas técnicas assim como sua aplicação no setting terapêutico.
Essas ferramentas propiciam o aumento das habilidades de solução de problemas no paciente e permitem a manutenção de uma postura ativa frente às situações, o que com o passar do tempo modela a capacidade desse paciente ser o regulador de seus próprios problemas (KNAPP, 2004). Assim, o uso constante do RPD capacita o usuário na identificação imediata e rápida das variáveis mantenedoras de seus comportamentos e permite que o próprio sujeito, com a prática adquirida, consiga autossuprimir respostas disfuncionais (GREENBERGER & PADESKY, 1999).
Concomitante a identificação dos eventos ativadores, pensamentos automáticos e respostas, pode-se explanar o manejo de ansiedade e apresentar a técnica de Respiração Diafragmática e Relaxamento Progressivo. Os sintomas fisiológicos da ansiedade surgem como mecanismos de defesa de um organismo, e o mobilizam para fuga ou luta. Quando exposto ao estímulo ansiogênico o metabolismo aumenta, tendo por resultado uma frequência cardíaca aumentada e aceleração da circulação sanguínea. Com a aceleração da circulação sanguínea, uma quantidade grande de oxigênio é recrutada. O sangue passa a se concentrar nos músculos envolvidos na fuga ou luta e a temperatura interna sobe, sendo todas essas respostas controladas pela ação do sistema nervoso simpático. A Respiração Diafragmática (RD) ajuda na ativação do sistema parassimpático, e auxilia a restaurar a sensação de relaxamento (NETO, 2011).

Referente ao treino de relaxamento, o objetivo da técnica é ensinar o paciente a liberar de maneira sistemática grupos musculares do corpo, com intenção de diminuir a tensão muscular e consequente redução de respondentes, ou seja, redução de respostas ansiosas frente a estímulos potencialmente aversivos (WRIGHT, BASCO, & THASE, 2008). ORelaxamento Muscular Progressivo de Jacobson é um treino de relaxamento muscular que consiste em contrair e relaxar todos os grupos musculares, um por vez. Devem ser trabalhados pés, panturrilhas, coxas, abdômen, braços, mãos e rosto (JACOBSEN, 1938; MALLOY-DINIZ, MATTOS, ABREU, & FUENTES, 2015; CANTINI, 2013). Ao atingir o relaxamento geral do corpo é possível observar diminuição nas respostas respondentes como sudorese, respiração lenta e discreta e também pressão arterial, e ocasiona tranquilidade emocional e organização de ideias (MALLOY-DINIZ, MATTOS, ABREU, & FUENTES, 2015).
O procedimento de contração e relaxamento deve ser realizado com cada grupo muscular durante 10 segundos. A principal característica da técnica consiste na atenção que o paciente deve manter nos contrastes entre tensão e relaxamento (JACOBSEN, 1938). Na medida em que o paciente aprende a discriminar entre tensão e relaxamento é possível solicitá-lo que imagine uma cena que propicie sensação de conforto e repita frases chaves para si mesmo durante os momentos em que está relaxado, como, por exemplo: estou sentindo meu corpo tranquilo, calmo, pesado, relaxado, entre outros (RANGÉ, 2005).
A inserção de imagens confortáveis e frases chaves pareadas ao estado de relaxamento parte do princípio de condicionamento respondente, porém na direção contrária em que a ansiedade se instalou, e resulta no contracondicionamento (MOREIRA & MEDEIROS, 2007). Do mesmo modo que estímulos potencialmente fóbicos eliciam respostas de ansiedade, o ensino da discriminação entre tensão e relaxamento e o uso das frases chaves quando contingências aversivas são acessadas, eliciam respostas de relaxamento frente os mesmos estímulos que outrora eram fóbicos, ou seja, o condicionamento respondente aversivo é quebrado (MALLOY-DINIZ, MATTOS, ABREU, & FUENTES, 2015; MOREIRA & MEDEIROS, 2007).
O uso da técnica de relaxamento é uma entre outras técnicas para a realização de umcontracondicionamento eficaz. Paralela a ela, as técnicas cognitivas como Exame de Evidências, Descatastrofização, Registro de Pensamentos Disfuncionais e Respiração Diafragmática devem ser executadas constantemente de modo que o paciente alcance autonomia na redução de suas respostas desadaptativas, tanto de ordem comportamental quanto cognitiva (KNAPP, 2004).
Os autores Friedberg e MCclure (2007) intitulam de Reatribuição o procedimento que promove a avaliação do indivíduo sobre explicações alternativas. A Reatribuição é utilizada quando o indivíduo tende a assumir responsabilidade por contingências sobre as quais não possui controle. A Torta da Responsabilidade se enquadra como uma técnica de atribuição que têm obtido resultados positivos em adolescentes e adultos, pois, permite o raciocínio e ressignificação dos elementos que compõem determinado evento, partindo do princípio de que todas as partes têm sua parcela de contribuição para que o todo se constitua (FRIEDBERG, MCCLURE, & GARCIA, 2011).
Abaixo temos um exemplo da aplicação da técnica de Reatribuição em uma paciente que sofreu abuso sexual:

CONCLUSÃO
De modo geral, as técnicas descritas são uma pequena parte de tantas outras técnicas que podem ser utilizadas em pacientes que sofreram abuso sexual, já que, toda construção de um programa interventivo está condicionada aos objetivos que o paciente e terapeuta delimitam, característica primordial da TCC. Porém, os estudos apontam que os sintomas ansiosos, e seus atributos, são prevalentes na grande maioria de indivíduos que sofreram abuso, portanto, foi o foco desse texto. Como dito anteriormente, essas são técnicas que podem ser utilizadas em sessões iniciais, e posteriormente trataremos de técnicas para sessões intermediárias e finais como a Seta Descendente, Análise Processual,Ressignificação, Psicoeducação e Prevenção a Recaída, estas serão abordadas em textos subsequentes.
O abuso sexual é um tema delicado e sofrido. Dessa maneira, é importante a manutenção do Empirismo Colaborativo, seriedade e zelo pelo paciente que se coloca em intenso sofrimento, afinal, a Psicologia se dispõe, como ciência das áreas da saúde, a prover cuidado àqueles que sofrem e necessitam de auxílio, sendo sustentada por uma perspectiva integral de cuidado e proteção a todos que dela necessitam (BRASIL, 2013).
A TCC tem se apresentado, nesse contexto, como modelo explicativo eficaz em suas intervenções, atuando tanto à nível preventivo, quanto interventivo. Dessa maneira, se torna importante que os estudos prossigam e as discussões teóricas gerem novas suposições com objetivo de que se obtenha resultados cada vez melhores e efetivos para essa população.
FONTE:https://revistasimplesmente.com.br
REFERÊNCIAS
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