VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A IGREJA-COMO EVITAR QUE AS COMUNIDADES RELIGIOSAS FACILITEM A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES ANA SARACCO

26/11/2023 16:02

Na última década, o problema da violência de género ganhou grande visibilidade através dos meios de comunicação social e de diferentes movimentos que surgiram para enfrentar e repudiar estes comportamentos abusivos. Muitas vezes, como sociedade, “mascaramos” e naturalizamos diferentes formas de violência.

MUITAS VEZES ACENTUAMOS ESTA VIOLÊNCIA DE GÉNERO, ESPECIALMENTE CONTRA AS MULHERES.

Exteriormente, é provável que as pessoas expressem a sua concordância com campanhas para prevenir a violência de género, mas possivelmente se examinarmos o seu comportamento diário encontraremos ações que contradizem estes postulados. Muitas vezes, consciente ou inconscientemente através da nossa linguagem, decisões ou omissões, acentuamos esta violência de género, especialmente contra as mulheres, em sociedades onde predomina uma cultura patriarcal. Isto é evidente nas altas taxas de feminicídios em todo o mundo.

Desde o momento em que nascemos, e à medida que crescemos, somos bombardeados por inúmeras mensagens sobre como uma menina e um menino deveriam ser e quais os papéis que cada um deveria desempenhar quando atingirem a idade adulta. As mulheres são estereotipadas como sensíveis, submissas, dependentes e fracas, com menos capacidade do que os homens para realizar tarefas que exijam liderança. Diz-se que “a mulher é um ser inferior” e ela é responsabilizada pela violência que sofre com frases como “a culpa é dela” ou “ela deve ter feito alguma coisa”.

Desta forma, como sociedade, estamos naturalizando a violência através da linguagem. As palavras são tão importantes! O que sai da nossa boca envia mensagens que afetam a vida dos outros para afirmar, edificar, ajudar, estimular e desafiar, mas também para ferir, desencorajar e destruir. Cada palavra que dizemos influencia a vida de outra pessoa, para melhor ou para pior. Não é apenas o que dizemos que afeta a vida das pessoas que nos rodeiam, especialmente aquelas sobre as quais temos influência, mas também a linguagem que usamos para comunicar o que queremos dizer.

Violência de gênero na igrejaAs igrejas evangélicas, como parte da sociedade, não estão isentas do problema social da violência de género. Há dois aspectos que considero fundamentais em relação a esta questão nas comunidades de fé. Por um lado, não estamos isentos, porque as pessoas da igreja podem sofrer este tipo de violência em suas casas, no trabalho e em diversas situações do dia a dia. Mas, por outro lado, este problema também está presente no discurso daqueles que lideram comunidades de fé.

ALGUMAS COMUNIDADES RELIGIOSAS ACTUAM COMO FACILITADORAS DA VIOLÊNCIA, SEM QUE ESTA SEJA NECESSARIAMENTE INTENCIONAL.

Algumas comunidades religiosas actuam como facilitadoras da violência, sem que esta seja necessariamente intencional. O patriarcado é um discurso ideológico predominante em algumas igrejas evangélicas. As mulheres devem “conformar-se” com o tratamento dos homens e submeter-se à sua autoridade. Tais atitudes são justificadas como bíblicas e de acordo com a vontade de Deus.

Como podem as igrejas agir como facilitadoras da violência contra as mulheres?

Em primeiro lugar, através de um sistema de hierarquias onde homens e mulheres não podem desempenhar papéis iguais. Os homens são colocados em posições de autoridade e de tomada de decisão, enquanto as mulheres que desejam exercer essas mesmas funções não estão autorizadas a fazê-lo. Por exemplo, ao não permitirmos que as mulheres preguem ou liderem, tomamos como certa uma certa “superioridade” dos homens, que então mantêm a mesma postura em casa. Pelo contrário, podemos encontrar papéis estereotipados das mulheres dentro das igrejas, tais como professoras de catequese, coordenadoras de grupos de oração ou cozinheiras. [1]
Em segundo lugar, em alguns casos, a violência de género pode basear-se na aplicação direta de certos textos sem considerar o quadro cultural em que ocorreram e como isso afeta a sua aplicação. Por exemplo, afirmar que o homem é o “cabeça da mulher” pode servir, numa cultura patriarcal, para legitimar a superioridade dos homens sobre as mulheres. Certamente, essa não era a intenção do texto original. Uma interpretação literal nem sempre é fiel à mensagem que o texto pretende transmitir, e corremos o risco de estabelecer dogmas que afetam a dignidade humana. [2]

Terceiro, a violência é facilitada pela falta de informação nas igrejas sobre a violência de género. Se este problema social não for discutido e explorado em profundidade, pode dar origem a diferentes formas de violência, muitas das quais podem ser muito subtis, mas violam a dignidade humana.

BUSCAR AJUDA PROFISSIONAL DE PESSOAS CAPACITADAS NO ASSUNTO E TOMAR AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA PRESERVAR A VIDA E A DIGNIDADE DE QUEM É VÍTIMA DE VIOLÊNCIA.

Finalmente, a violência pode ser encorajada através da “espiritualização” de situações que requerem ajuda e tratamento urgentes. Acredita-se que o agressor deixa milagrosamente de ser violento apenas pelo poder da oração. Sem dúvida, Deus pode mudar completa e milagrosamente as pessoas e reverter situações complexas, mas ao orarmos, também devemos agir. Ou seja, buscar ajuda profissional de pessoas com formação no assunto e tomar as medidas necessárias para preservar a vida e a dignidade de quem é vítima de violência.

A vida das pessoas é condicionada, entre outras coisas, pelos conhecimentos adquiridos e pelas informações recebidas ao longo da vida. A aprendizagem obtida nas diferentes áreas onde nos desenvolvemos e crescemos é posteriormente traduzida nas nossas atitudes e na nossa forma de pensar e agir. O que aprendemos e vivemos na comunidade eclesial da qual fazemos parte contribui sem dúvida para a nossa formação como pessoas de fé. O ensinamento que emerge de alguns pastores e líderes é então reproduzido no discurso daqueles que fazem parte daquela comunidade, tanto naqueles que se posicionam em um lugar de superioridade quanto naqueles que o aceitam de forma submissa.

É um desafio para a pastoral poder ajudar a prevenir a violência de género, detectá-la a tempo, acompanhar quem a passa, ser agentes de paz e não actuar como facilitadores da mesma.

 

O que podemos fazer como igreja para prevenir a violência de género?

Gostaria de destacar três ações principais:

Primeiro, transforme as crenças no nível da liderança. [3]

Muitos dos que lideram igrejas – pastores, líderes ministeriais e outros – pensam que tudo é como eles acreditam e, portanto, deve permanecer assim. O problema deve ser trabalhado desde a raiz, ou seja, transformando essas crenças, e depois mudando comportamentos e discursos. Uma forma de conseguir isto é através de uma formação abrangente em liderança [4] que inclua a compreensão dos profissionais sobre questões de justiça social relacionadas com o género.

Em segundo lugar, reflectir a igualdade de uma forma concreta na vida quotidiana da Igreja.

Faça parte de uma igreja que promove a igualdade nas relações entre homens e mulheres. Por exemplo, ter homens e mulheres em posições de autoridade, exercendo a tomada de decisões e assumindo o papel de pastor, abrirá caminho para a não naturalização da violência.

Terceiro, rever a presença de temas relacionados com o género nas celebrações litúrgicas.

As questões da violência de género devem ser discutidas e ensinadas abertamente na rotina diária da vida da igreja. É essencial estar informado, compreender quais são os problemas, os diferentes tipos de comportamento violento e fornecer ferramentas práticas para detectá-lo, salvaguardar políticas contra ele e não naturalizá-lo.

Reflexão final

A dignidade humana deve estar acima de qualquer mandato religioso. Se conseguirmos demonstrar isto nas comunidades de fé de uma forma concreta, seremos certamente agentes de paz e criaremos um espaço onde mulheres e homens possam sentir-se seguros, amados e respeitados.

A DIGNIDADE HUMANA DEVE ESTAR ACIMA DE QUALQUER MANDATO RELIGIOSO.

Como explica Elsa Támez, a Bíblia, interpretada de forma androcêntrica e patriarcal, tem sido uma fonte de legitimação para marginalizar as mulheres na igreja e na teologia. [5] Mas também vimos que, quando lido da perspectiva dos oprimidos e marginalizados, tem sido uma fonte de libertação e de vida para muitos, incluindo as mulheres. Quando aplicadas à Igreja, as comunidades de fé podem ser locais de acolhimento, amor, contenção e libertação. “Permitamos que homens e mulheres reflitam a nossa constituição humana original, isto é, 'Sejam à imagem e semelhança de Deus'”, exorta-nos Elsa Támez. [6]

Jesus nos deixou o melhor modelo para imitar. Precisamos ser humildes e reconhecer como igrejas que falhamos. Não podemos voltar no tempo e apagar tudo o que poderia ter sido evitado, mas a boa notícia é que podemos mudar a realidade de muitas mulheres daqui para frente.

Notas

  1. Nota do Editor: O Compromisso da Cidade do Cabo https://lausanne.org/es/contenido/commitment , Seção II F 3, sobre 'Homens e Mulheres em Parceria', reconhece diferentes interpretações bíblicas dentro do Movimento de Lausanne sobre papéis específicos masculinos e femininos, mas fornece princípios para um envolvimento positivo em nome do evangelho. 
  2. Nota do Editor : Dentro do cristianismo evangélico, existe um espectro de posições teológicas sobre a relação entre homens e mulheres – incluindo algumas descritas como complementarismo e igualitarismo. De algumas perspectivas, uma aplicação literal de algumas passagens pode resultar na diminuição da dignidade das mulheres. 
  3. Robert Dilts, Mudando Sistemas de Crenças com PNL (Califórnia: Dilts Strategy Group, 2018). 
  4. Nota do editor:  Veja o artigo de Mary Ho “A cultura transcendente da liderança servil” na edição de março de 2020 da Lausanne World Review https://lausanne.org/es/content/aml/2020-03-es/ the-transcendent-culture -de-liderança-serva 
  5. Elsa Támez, 'Diretrizes hermenêuticas para entender Ga 3.28 e Co 14.34', Journal of Latin American Biblical Interpretation (1993): 10. 
  6. Catalina F. de Padilla e Elsa Támez, A relação homem-mulher na perspectiva cristã (Buenos Aires: Kairós, 2002), 44.