Pratique o desapego

21/02/2012 20:41

 

Descartar parte de sua vida pode revelar tantas coisas com relação a si mesmo quanto várias sessões de terapia. Aquilo que você guarda e o que joga fora, o que compra ou deixa de comprar, é um espelho que reflete fora o que você pensa e sente por dentro.

No livro Jogue Fora 50 Coisas, a americana Gail Blanke treina a prática do desapego de forma inteligente. Para começar, ela não facilita a contagem dos itens que devem ir embora: dezenas de livros contam como uma única coisa, assim como sapatos e maquiagens, por exemplo. Mas por que nos apegamos a tantas coisas?

A linguagem das coisas

Deyan Sudjic, diretor do Museu de Design de Londres, fez uma análise irônica sobre as verdadeiras razões pelas quais consumimos no livro A Linguagem das Coisas. Ele revela quais os impulsos inconscientes que determinam o ato de comprar e como a indústria nos captura por meio do design e da publicidade. Para ele, entender o desejo de manter uma coisa pode acabar revelando motivos que talvez estivessem ocultos antes.

"Os objetos são o que usamos para nos definir e para sinalizar aos outros quem somos", afirma Sudjic. "Sapatos, automóveis ou a decoração da casa são elementos que empregamos para exteriorizar nossa personalidade, tanto quanto para ajudar a construí-la. É uma via de duas mãos", afirma a psicóloga Maria Cândida do Amaral.

De frente com o inimigo

Para se desfazer de 50 itens, Gail aconselha a manter três sacos pretos com as etiquetas: vender, guardar e doar. Mas também avisa que, ao jogar as coisas fora, em algum momento entramos em contato com um inimigo oculto: nossas crenças.

O problema com as crenças é que elas se ancoram em meias verdades. Ter medo de descartar algum objeto caro apenas pela ideia de que nunca mais se poderá comprar outro igual é uma delas. Mas será que isso é definitivo? Será que se tivéssemos o dinheiro em mãos compraríamos exatamente as mesmas coisas, sem utilidade? É óbvio que não.

Nosso homem neolítico

Se no Neolítico os homens das cavernas colecionavam clavas, hoje o leque de opções se ampliou consideravelmente: é só a gente dar um pulo num shopping para se certificar disso. Mas segundo o inglês John Naish, autor de Chega de Desperdício!, nossos ancestrais tinham muitas mais clavas, flechas, facas ou enfeites do que necessitavam. Ficavam horas a esculpi-los ou entalhá-los, e os fabricavam com características diferentes. E por quê? Ora, pelas mesmas razões de hoje: por prazer. E também para impressionar os outros e ganhar prestígio social dentro da tribo.

No Neolítico, ser rejeitado pelo grupo significava morrer. Naquele tempo uma pessoa não tinha muitas chances de sobreviver se fosse deixada sozinha numa floresta. E não pense que você está imune a isso. Mesmo para aqueles que optaram por uma vida mais simples, o desejo de impressionar pode continuar latente por debaixo do pano.

Limitações e associações

O mestre espiritual Gurdjieff vem à tona. Ele fala que somos movidos pelas associações que damos às pessoas, situações e coisas. Colocamos etiquetas emocionais nelas e na verdade é a elas que somos ligados. Isto é, uma xícara não é só uma xícara, mas uma herança da tia Elza. Quanto mais identificação com essas associações, pior é. Segundo Gurdjieff, elas nos impedem de ver a realidade como ela é, onde as coisas são apenas coisas, sem valor intrínseco.

De acordo com Gurdjieff, desde que vista conscientemente, a associação não atrapalha mais. Quanto mais conseguirmos enxergar nossos condicionamentos e o nosso limitado modo de pensar, mais essa visão mostra nossa situação de inconsciência de nós mesmos. E, para ele, observar nossas atitudes é o que vale, pois é o ponto de partida da busca pela consciência.

Voltando à lista dos 50 itens, Gail garante que o último deles é uma espécie de centésimo macaco: depois de o ter atingido, tudo pode mudar definitivamente em nossas vidas. E pelo menos ficamos livres de um enorme peso que atravancava o caminho.

LIVROS
Jogue Fora 50 Coisas, Gail Blanke, Ediouro
Chega de Desperdício!, John Naish, Best Seller

 

 

Livre-se das coisas velhas

Tudo que está sobrando e ocupando espaço pode atrapalhar sua vida, inclusive sentimentos ruins

 

 
 
 
 

Por que será que o ser humano tem tendência a acumular tantas coisas? "Os objetos são vistos como uma extensão de nossa personalidade", comenta o antropólogo Arthur Shaker, professor de meditação budista da Casa de Dharma, em São Paulo. "Abrir mão deles seria como abrir mão de si mesma." Nesse sentido, cada objeto assume uma significação simbólica. Aquela fruteira velha é importante porque foi dela que seus filhos pegaram o alimento que os fez crescer. Mas você continuará a ser a mãe amada mesmo se livrando da fruteira. E esse exemplo vale para o parceiro, os amigos, a família. Entendeu?

A sociedade de consumo tem um tantinho de culpa por essa mania de não nos livrarmos das coisas, mas a necessidade de guardá-las é muito anterior ao desejo de um sapato novo de uma grife qualquer. "Em seus sermões, Buda já falava sobre o apego como uma forte característica humana", lembra Arthur.

É fácil enumerar diversos motivos para que alguém sinta dificuldade em se livrar de coisas e sentimentos. "Muitas vezes, guardamos algo de alguém que se foi como uma homenagem, até sermos capazes de realizar nossa despedida interna", avalia Lana Harari, psicóloga de família de São Paulo. Há, ainda, o desejo de se precaver contra todas as eventualidades que o futuro possa trazer. Vai que ocorra uma enchente e você precise daquela galocha guardada há anos. "Nesse caso, é uma necessidade parecida com a que nos faz carregar uma mala pesada quando viajamos por temermos ficar desprotegidos", compara Lana.

Pode ser também insegurança com relação ao futuro, medo de se livrar e não conseguir aquilo novamente, a preguiça de tomar uma decisão (jogo fora ou não o relógio que parou de funcionar?). Seja qual for a explicação para juntarmos coisas e sentimentos, a conclusão é que isso é ruim. Ao abandonar coisas que não têm mais valor ou utilidade, sua essência aparecerá. Desfazer-se do peso morto ainda abre espaço para a introspecção. Ambientes atulhados causam uma superexcitação.

"A mente fica o tempo todo sendo arrastada pelo objeto e não descansa nunca", descreve Arthur. Sem falar que viver tropeçando no que não serve e acaba atravancando o fluxo de energia. "Toda casa tem uma energia que chamamos de chi", explica Franco Guizzetti, consultor de feng shui, de São Paulo. "O chi não circula em ambientes atulhados, cheios de objetos, saturados. A energia fica estagnada", completa ele. Essa regra vale também para coisas que ficam paradas durante muito tempo. Se não quer se livrar de algo, torne-o útil. É preciso ler os livros comprados, consertar o que está quebrado, tirar o aparelho de jantar de porcelana do armário. Não há razão para manter enfurnados objetos que você julga importantes. É você que faz um momento ser especial para merecê-los.

É ótimo livrar-se de peças sem serventia, mas não é tão bom assim gerar lixo. E não estamos aqui chamando de lixo apenas aquilo que está estragado, mas objetos que, ainda em bom estado, são encostados facilmente em nome da modernidade. "Talvez a solução não seja apenas jogá-los fora, mas sequer adquiri-los", diz Arthur.

Por onde começar

O primeiro passo para liberar a área é, sem dúvida, estar disposta a isso. "Jogar coisas fora pede coragem e manda uma mensagem para o mundo: quero me renovar", diz Lana. Tomada a decisão, vale uma dica prática de Gail Blanke em seu livro Jogue Fora 50 Coisas. Ela sugere pegar três sacos grandes de lixo e etiquetá-los: lixo (propriamente dito), doação e venda. Quando algo entrar em algum deles, não pode mais sair. O segredo é passear com eles pelos vários cômodos e fazer com que se encham com tudo o que é inútil.

Depois do excesso material, vem o mental. Pode ser um bom caminho começar com as lembranças incômodas, as mágoas não resolvidas. E, principalmente, as ideias preconcebidas que tem de si mesma. Gail sugere mais algumas sensações que podem ir para o saco: arrependimentos, a tendência de sempre pensar no pior, a convicção de que precisa fazer tudo sozinha.

"Precisamos nos desapegar do velho, dos automatismos, dos atalhos mentais que usamos por preguiça e que nos impedem de ter um novo olhar sobre tudo", complementa Lana. "A decisão de pôr mãos à obra e reorganizar o espaço interno e externo tem um efeito transformador. Abre espaço para uma nova disposição, um novo jeito de se posicionar na vida", diz. É um movimento de renovação não apenas do que está visível, mas, mais importante, do que está por dentro - do seu armário ou de você mesma.