A figura de Deus vem ocupar o lugar que um dia esteve preenchido pelo pai.

13/08/2023 22:56

A questão sobre a existência de Deus, ou de deuses, constitui uma síntese de outras questões que movem a existência do sujeito: por que e para que estou aqui, o que é a morte, quem sou eu, o que é um pai. "São as perguntas que o simbólico abre, mas não consegue fechar. [...] É o simbólico quem nos mostra seu mistério. Mas o simbólico não consegue responder e delata, nestes pontos, a impossibilidade de dar conta do real" (JIMENEZ, 1998, p.21). Percebemos, então, que o real se apresenta mais frequentemente ao sujeito, assumindo o destaque de protagonista, lugar antes ocupado pelo simbólico. O real é algo da ordem do inapreensível, impossível de ser significado, o que gera angústia ao sujeito e que escapa também à apreensão da ciência.

Uma das formas de apaziguar a angústia despertada pela presença do real que a civilização oferece, que é da ordem do simbólico, é a religião, com o culto a uma divindade plena de poder e perfeição, doadora de sentido e garantias para a vida do sujeito. A raiz dessas ideias religiosas foi descrita como a conjugação de dois elementos: a necessidade de proteção, que surge em função do desamparo, e o anseio pelo pai. Desse modo, a figura de Deus vem ocupar o lugar que um dia esteve preenchido pelo pai.

No primeiro capítulo, abordamos a visão da psicanálise sobre a religião, tendo como base alguns textos em que Freud escreve sobre o fenômeno religioso, enfatizando principalmente a imagem paterna que há por trás da figura de Deus. Assim, Freud possibilita que utilizemos a psicanálise como instrumento que revela o que permanece velado na religião.

Como vimos, Lacan, em seus últimos Seminários, enfatiza uma noção de pai notadamente diferente da noção do pai como aquele que sustenta a ordem simbólica e portador da interdição. O que percebemos é que a leitura que o referido autor faz sobre o pai faz com que este deixe de ter a forma de oposição e passe a funcionar como um nó. Assim, Lacan desloca-se do aspecto do pai como representante de uma ordem simbólica, perfeito enquanto morto, para uma figura de pai com imperfeições, castrado.

Através dessas contribuições que Lacan faz à teoria psicanalítica do pai, abre-se também uma nova maneira de se pensar a religião. Com a noção de real, exposta no segundo momento do seu ensino, é que Lacan pôde ir além de Freud na leitura sobre a religião. Pois, se não se pode apreender, assimilar o real, a religião aí tem um lugar apaziguador: o da promessa de um mundo onde isso funciona, onde há a possibilidade da completude, do todo-sentido, onde a falta pode ser suturada pela promessa da vida eterna. É com esse recurso que a religião triunfa. Ao contrário do que previu Freud, ela só se fortalece com o passar do tempo. Diante do não querer saber, da evitação do real, faz-se necessário crer no Outro, em Deus, no pai todo poderoso, para encontrar o conforto frente ao desamparo fundamental da condição de existir. E Lacan já atentava para esse fato em 1974.

Na tentativa de aproximar a religião e o sinthoma, uma possibilidade nos chama a atenção. Percebe-se que o Nome-do-Pai começa a se apresentar como um semblante, uma máscara que vela a inconsistência do Outro. Ele não é propriamente o buraco, mas ele tampa o buraco, fazendo crer que não há buraco. Ao fazer isso, ele perde sua unicidade, já que termos variados podem cumprir essa função de tapa-buraco e nenhum deles é, por definição, o significante primeiro que está ausente. Se há vários Nomes-do-Pai, é porque nenhum deles é o Nome-do-Pai: nada corresponde a um nome próprio, todos não passam de semblantes (ZENONI, 2007).

Assim, sobre a questão da religião, podemos pensar então que ela também atua como um semblante, tentando velar a falta inerente ao ser humano, mais especificamente, a falta de um pai protetor, o desamparo infantil, como Freud já havia afirmado. Essa assertiva nos leva invariavelmente a algumas questões: poderia, então, a religião atuar como um dos tipos do Nome-do-Pai? E quais consequências esse fato traria ao sujeito? A religião poderia estar servindo como instrumento, como sinthoma, exercendo a função de nó com relação aos três registros?

Aqui, não se trata de menosprezar o Nome-do-Pai no que vai além do pai e, sim, utilizar-se dele, permitindo-se livrar de sua condição de ideal. Diante da falha do pai, o sujeito esforça-se em recompô-lo, velando essa falta. E a partir da leitura do pai em psicanálise, fica clara a irredutibilidade dessa falha paterna. O pai desce do pedestal de perfeição a que o filho o eleva, mostrando as marcas eternas de sua castração.

Se Deus está morto e o destino não oferece mais garantias, o sujeito encontra-se diante de um impasse que o obriga a se responsabilizar por seus atos. Ele entra em contato com a falta de garantias. Nesse sentido, "cada um, cada uma, é responsável pelo seu inconsciente e pela Lei que nele se articula" (JULIEN, 1996, p.94). E esse sujeito não parece estar preparado para assumir essa responsabilidade, o que é verificado pelo movimento de velar a inexistência do Outro através do amor. Ele toma como solução para a inexistência do Outro amá-lo, pois, dessa forma, ele pode fazê-lo existir. Ou seja, é através do amor que o sujeito vela a inconsistência do Outro, mantendo-se paralisado em sua posição de assujeitamento, sem poder avançar na direção da causa do desejo. Trata-se de salvar o pai encobrindo sua inconsistência através do amor.

Ao sujeito, então, é oferecido um desafio: liberar-se de seu esforço de recompor o pai, aceitando suas falhas e servindo-se dele sem, apesar disso, servir a ele. Desse modo, podemos pensar que um dos impasses a que o sujeito pode ser levado no processo analítico é a decisão fundamental entre submeter-se ao pior do pai, posicionando-se como objeto de sacrifício e dependente desse pai, amando-o incondicionalmente, ou enfrentar o desamparo experienciado com as falhas paternas, fazendo valer o seu desejo.

Então, o que o sujeito deve fazer com a inconsistência desse pai é saber utilizar suas falhas para ir além dele. Percebemos que esse é o movimento que a religião não permite que aconteça. Nela, Deus-pai é elevado a um ideal de perfeição ética. Ele é exaltado e glorificado pelos filhos, tornando-se um objeto de seu amor.